Mão, pé, perna, braço, umbigo. A voz de Arnaldo Antunes ecoa em vários canais e nos bailarinos do Grupo Corpo vestidos de preto na caixa-preta do teatro.
Corpo, corpo, corpo: a repetição poética-física da coreografia “O Corpo”, de Rodrigo Pederneira com música de Antunes, volta a São Paulo depois de 13 anos. A temporada, que começa nesta quinta-feira (15), traz de volta também a sarau músico de “Benguelê”, com trilha de João Bosco —esta apresentada pela última vez na cidade em 2012.
“Engraçado, remontando as obras depois de tanto tempo, vejo que nenhuma envelheceu”, diz Rodrigo. “Benguelê” foi criada em 1998, “O Corpo”, em 2000. As duas marcam o que se labareda de dança brasileira contemporânea, que a companhia mineira ajudou a gerar. Em cena, os brasis do Brasil, dos centros urbanos às festas do interno.
Uma das características do Grupo Corpo —além dos movimentos que partem do quadril— é se estribar na trilha criada por qualquer compositor brasílio para desenvolver a teoria da coreografia. No caso de Antunes, a trilha foi entregue completa e fechada.
“Ele disse: é assim, essa é a trilha”, conta o coreógrafo. Isso levou a introdução de novos elementos ao estilo do grupo, inclusive o que Rodrigo labareda de “atrevimento” de se apossar de movimentações das danças urbanas.
Sobre a base do tapete vermelho, com pontos de luz também vermelhas que piscam uma vez que pixels ao fundo, os bailarinos executam movimentos quase robóticos. Um corpo-máquina, mas que “tem alguém uma vez que recheio”.
E surpresas. No final, surge um samba de roda com pegada rock’n’roll. O susto de Rodrigo, quando criou a coreografia, foi esse samba meio punk. “De repente, ele entra com isso, sai de tudo o que vinha sendo feito. Mas a gente conversou recta com a música.”
Já em “Benguelê”, a conversa começou já na elaboração de Bosco, que deixou o corégrafo e seu irmão, Paulo Pederneiras, diretor da companhia, à vontade para usar as músicas na sequência preferida por eles, e mesmo trinchar as que não quisessem.
De vestimenta, algumas caíram fora, as mais voltadas para o clássico. Da edição, resultou uma coreografia que é quase uma sarau popular, mais malemolente do que a rijeza da cidade contemporânea de Antunes.
Ao contrário do preto e vermelho de “O Corpo”, “Benguelê” tem muitas cores. E um “efeito próprio” criado por Paulo, responsável pela cenografia e iluminação das obras da companhia. Com a luz, ele cria vários níveis no palco, e um parece estar supra do outro. O testemunha tem a sentimento de que a risco de bailarinos de cima é uma projeção.
“É um trecho [da coreografia] que a gente chamava de ‘passeio’ ou ‘passagem’. A solução que criei com a iluminação acabou sendo um caminho para a geração coreográfica”, diz Paulo.
A cenografia também traz um fundo de faixas coloridas, que são utilizadas no figurino do grande festejo final. Congado, reizada, jongo e outras manifestações populares são a tônica do espetáculo.
Esta sarau toda que encanta o bailarino Davi Gabriel, 23. Ele está entre os jovens bailarinos que entraram para a companhia recentemente. Entre 2022 e 2024, o Corpo incorporou dez novos bailarinos, com idades entre 22 e 26 anos.
Dançar “Benguelê” era um sonho de Davi, nascido no Belém do Pará. Formado em dança clássica —ele estudou na escola do Bolshoi, em Joinville—, começou a se interessar por uma dança mais brasileira ao se mudar para São Paulo. “Descobri que posso misturar a técnica clássica com essa alegria do corpo contemporâneo brasílio”, diz o jovem bailarino.
De alegria em alegria, depois passar pelo período difícil da pandemia e perda do patrocínio da Petrobras, o Corpo pulsa e se prepara para comemorar 50 anos em 2025. Por enquanto não há spoiler. “A gente ainda está vendo o que vai fazer”, diz Rodrigo, sobre uma esperada obra novidade para estrear na sarau de natalício.
Paulo desconversa. “Essa questão de comemorar é estranha. Sei que 50 anos não é pouca coisa nem é geral para uma companhia privado. Mas também penso que o Corpo nunca arrefeceu, nunca ficou em cima de comemorações de um sucesso”.
Realmente, a companhia não precisa de efeméride para atrair plateia. Mas o público conta com uma bela estreia comemorativa no próximo ano. Em breve, mais notícias.