Num escritório no 29º andejar de um prédio mercantil no núcleo do Rio de Janeiro, de onde se avista pela janela o Pão de Açúcar ao longe, Guerreiro do Divino Paixão tem pretérito dias mexendo num programa de computador para inserir efeitos especiais em vídeos.
Com o software de colagens digitais, o artista põe lasers vermelhos nos olhos de uma estátua que representa Helvécia, a nume símbolo da Suíça. Para outra personagem, ele dá uma dezena de braços, de modo que ela pareça um deus hindu, e a coloca flutuando nas galáxias.
Os personagens meio surrealistas, meio meme de internet devem estar num vídeo sobre a Suíça que o artista vai apresentar na próxima Bienal de Veneza, a partir de abril. Guerreiro, suíço-brasileiro de 40 anos radicado na capital carioca, foi o escolhido para simbolizar o país europeu na principal exposição de arte contemporânea internacional, depois de competir com quatro concorrentes.
Para a bienal, além da obra sobre a Suíça, Guerreiro prepara um vídeo músico a saudação de Roma, com imagens gravadas na cidade. Vemos, por exemplo, a performer Ventura Profana subindo nua a portentosa escadaria com corrimãos de mármore do Instituto Suíço em Roma e, em seguida, tirando selfies em pontos turísticos da cidade. O tom da filmagem é de deboche do classicismo romano e das hordas de visitantes.
A teoria de ambos os vídeos, conta o artista, é questionar dois lugares fundamentais na espalhamento de valores morais e estéticos para o Oeste —não por eventualidade sua mostra em Veneza é intitulada “Civilizações Super Superiores”. Ele justifica falando que a Suíça, seu país natal, vende uma imagem de sublimidade, uma vez que se fosse a divinização do capitalismo e do estabilidade entre natureza e tecnologia.
Guerreiro afirma ainda, entre uma gargalhada e outra, que o país dos Alpes se aproveita da boa imagem que goza no exterior, tendo até patrocinado um desfile de uma escola de samba no Rio. “Cá no Brasil, por exemplo, tem essa disputa de quem vai ser a Suíça brasileira —Novidade Friburgo, Campos do Jordão, Gramado. E daí tem a Suíça da América Latina —Uruguai, Costa Rica. Na Índia a mesma coisa —quem vai ser a Suíça da Índia?”
Os vídeos são o sexto e o sétimo capítulos da série “Atlas Superficcional Mundial”, que Guerreiro desenvolve há quase duas décadas e que já conta com trabalhos sobre o Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Bruxelas. Os novos filmes serão apresentados de forma imersiva no pavilhão da Suíça na bienal, entre colunas, fontes e superfícies de mármore falso, elementos arquitetônicos empregados para sugerir a superioridade do Oeste.
A estética de Guerreiro é maximalista, assim uma vez que o Carnaval, pelo qual se diz enamorado. Seus vídeos e publicações em papel são overdoses visuais e remetem a telas de videogame ou sites dos primórdios da internet, aqueles cheios de gifs que piscam. O artista diz nunca ter se identificado com a teoria de que menos é mais, seja durante seu estudos de arquitetura em Genebra ou depois, quando enveredou pelas artes visuais.
Seu vocabulário visual deve muito às férias que passava no Rio de Janeiro quando moço. “A família da minha mãe não me deixava trespassar e eu ficava três meses na frente da televisão, o dia inteiro. Eu ficava hipnotizado com Xuxa, novelas, Silvio Santos, [as vinhetas do] Hans Donner. Porquê moço gay, tinha uma fascinação por essas coisas. Era um mundo muito matizado, de aparente liberdade.”
O apelo visual dos vídeos do artista —dos quais ele também faz o roteiro, a direção e a edição— está a serviço de uma sátira ferrenha sobre o imaginário que as cidades constroem para si. Num trabalho de colagem, Guerreiro justapõe de forma absurda imagens familiares de pontos turísticos, de propagandas, do universo empresarial e de programas de televisão. “São diferentes narrativas que viram uma ‘superficção’ e estão sobrepostas à verdade”, ele diz.
No vídeo do Rio de Janeiro, por exemplo, vemos cenas clichê de turistas estrangeiros sorridentes na praia e uma banhista afirmando, numa entrevista para a TV, que não pode conviver com “gente suja” do Meier na praia de Copacabana.
Para inventar os mosaicos de cada lugar, o artista afirma que suas vivências nas cidades são fundamentais —em Roma ele ficou cinco meses. Fruto de mãe brasileira e pai suíço, Antoine Guerreiro Golay passou a puerícia e a puberdade na França, fez faculdade na Suíça e se mudou para o Rio em 2013, onde vive.
Na capital carioca, não demorou para se integrar com o universo do carnaval. Em meados da dez passada, ajudou a tocar, com o ex-namorado, o conjunto de rua Bunytos de Corpo, em que os rapazes saíam vestidos com roupas de ginástica coloridas e justíssimas, estilo lição de aeróbica dos anos 1980.
Em paralelo, foi desenvolvendo a curso de artista —participou de diversas exposições coletivas, dentre as quais uma no MAR, o Museu de Arte do Rio, e outra na Pinacoteca, em São Paulo, e teve três individuais, sendo a maior uma em 2022 no Núcleo de Arte Contemporânea de Genebra.
Fazer o pavilhão suíço em Veneza será sua maior obra, para a qual o artista teve quantia e equipe para gravar os vídeos. Ele espera um impulso na curso. “A menos que todo mundo odeie e que me enterrem num buraco”, diz, aos risos. “Mas estou feliz com o trabalho. Vamos ver, agora é a secção decisiva.”