'guerreiros do sol' repensa cangaço a partir das mulheres

‘Guerreiros do Sol’ repensa cangaço a partir das mulheres – 10/06/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Sob o sol que faz chamejar o sertão nordestino, uma disputa entre um coronel e um cangaceiro mancha a terreno de sangue. Tiros voam de um lado para o outro, embora sejam exclusivamente uma modelo mais óbvia de uma violência que toma diversas formas.

Armas são o menor dos problemas da protagonista de “Guerreiros do Sol”, castigada pela miséria, a injustiça e as palavras disparadas pelos homens ao volta, num sertão em que a figura do “cabra masculino”, montado no cavalo e com revólver na cintura, é irrecusável.

Terceira romance original do Globoplay, plataforma de streaming da Orbe, a trama de 45 episódios estreia nesta semana construindo uma ponte entre as violências do presente e aquelas do sertão nordestino entre os anos 1920 e 1930, estação em que Lampião e seu grupo reinavam.

Ao seu lado, Maria Formosa também aterrorizava os sertanejos, num relacionamento com traços de insulto, segundo muitos pesquisadores, embora romantizado. Tornaram-se figuras míticas, um Bonnie e Clyde brasílico, e agora inspiram o par protagonista de “Guerreiros do Sol”, Rosa e Josué –papéis de Isadora Cruz e Thomás Aquino.

“O cangaço é um movimento muito nunes, que só aconteceu naquele lugar, naquela estação. Vimos ali a possibilidade de fazer um melodrama”, dizem George Moura e Sérgio Goldenberg, autores da romance, que já assinaram séries porquê “Onde Nascem os Fortes” e “Amores Roubados”.

“É para entreter as pessoas, mas também para expressar que aquele Brasil arcaico, palco de uma guerra, dialoga muito fortemente com o nosso presente. ‘Guerreiros do Sol’ é uma tentativa de olhar para o pretérito para compreendermos as contradições de hoje. Por isso descrevemos a romance porquê uma história de paixão ambientada numa guerra, a guerra de formação do Brasil moderno”, afirma Moura.

“Guerreiros do Sol” acompanha um paixão que floresce em meio à sequidão do sertão nordestino, com suas desigualdades e a falta do Estado. Vizinha de um rico e poderoso latifundiário, a mocinha Rosa decide se matrimoniar com ele, cônscio de que a vida não lhe suplente grandes coisas e apesar de estar apaixonada por Josué, também pobre.

Eles deixam evadir uma dança num forró, porém, e o emulação impele o coronel –encarnado por José de Abreu– a travar uma guerra contra Josué. Ameaças se transformam em morte e, para vingar uma desgraça pessoal, o mocinho e seus irmãos se tornam cangaceiros.

Não é um spoiler expressar que a protagonista e narradora logo vai pegar em armas também, em procura de suas próprias vinganças. Assim, Rosa vai se aproximando de Maria Formosa –uma mulher potente num mundo violentamente misógino, que labareda a atenção pela venustidade.

“Guerreiros do Sol” tomou emprestado o nome e a pesquisa do livro de Frederico Pernambucano de Mello, historiador que serviu de consultor da romance. Moura e Goldenberg, porém, caminharam rumo à ficção, justamente porque “cada opinião dada entre os especialistas do cangaço acende uma chispa”, dizem, em referência às versões díspares do movimento e da relação entre Lampião e Maria Formosa.

“Rosa tem uma visão sátira sobre o cangaço e a sua participação naquilo, mas ela e Josué, apaixonados, foram impelidos a se tornarem cangaceiros, para sobreviver mesmo”, diz Moura.

“Eu não entrei no cangaço por malvadeza minha, mas pela malvadeza dos outros”, sintetiza muito o mocinho, num dos episódios, pegando emprestada a fala atribuída a Lampião, perseguido na juventude pelos coronéis e as forças policiais corruptas do interno de Pernambuco.

Já Rosa foi, simples, pensada à imagem de Maria Formosa. Mas foi a cangaceira Dadá, Isadora Cruz conta, quem mais a inspirou. Única mulher a empunhar um fuzil no grupo de Lampião, ela foi casada com Corisco, o segundo no comando, e ganhou a epíteto de Suçuarana do Cangaço. Apesar do sadismo do marido, Dadá com frequência intervia para poupar a vida de inocentes.

“A Rosa traz um novo olhar sobre uma história muito masculina, muito violenta”, diz a paraibana, que quer desafiar o arquétipo da mocinha de romance. “Existe nela uma sensibilidade para os problemas da estação. Queremos mostrar os dois lados da moeda, a dicotomia do cangaço, porque até hoje há quem ame e quem odeie. Porquê a política, que tem polarizado e dividido tanto a sociedade.”

Não é exclusivamente no grupo de Lampião que as mulheres do folhetim encontram sua voz, porém. Alinne Moraes e Nathalia Dill são outras que encarnam figuras adiante de seu tempo, gerando debates sobre instrução e votação. “Voto feminino para quê?”, reclama o personagem de Daniel de Oliveira, fruto do coronel, ao ler o jornal. “Mulheres são cidadãs, tanto quanto você”, responde a dona de mansão culta e gentil vivida por Moraes.

Dupla masculina, Moura e Goldenberg contaram com um time de colaboradoras mulheres, formado por Cláudia Tajes, Mariana Mesquita, Ana Flávia Marques e Dione Carlos, além de Marcos Barbosa. A direção universal é de Rogério Gomes, da última versão de “Pantanal”.

Por ser uma romance pensada para o streaming –mais tarde, deve estrear na TV ensejo, mas com cortes–, “Guerreiros do Sol” tomou liberdades que não seriam vistas na programação linear da Orbe. A violência da história, cá, é gráfica, com balas furando a músculos e fazendo jorrar sangue. Também há menos pudor em relação ao sexo, com seios e nádegas dando mais crueza ao sertão.

Numa cena, Rosa se masturba deitada na rede, com seus gemidos entrecortados pelo forró da noite anterior, quando dançou colada a Josué. “Tá passando mal?”, pergunta sua mana, encarnada por Alice Roble, atriz que vive uma subida meteórica posteriormente “Cangaço Novo” e “O Agente Secreto”, do outro lado da porta.

Para os autores, “Guerreiros do Sol” continua sendo essencialmente uma romance, principalmente por pretexto de sua veia melodramática –e apesar de já estar inteiramente gravada, ter menos núcleos de personagens, ser uma produção de gênero e ter exclusivamente 45 capítulos. O termo “série”, porém, escapa cá e ali nas entrevistas que a equipe vem dando.

O folhetim tem quase a mesma quantidade de capítulos de “Venustidade Infalível” –esta tinha 40–, primeira e bem-sucedida proeza do streaming Max no formato. O padrão se repete, apontando para o que pode ser um desdobramento –ou opção– da romance tradicional.

Para o testemunha, “Guerreiros do Sol” talvez esteja mais próxima de uma grande produção de faroeste hollywoodiana, ou dos filmes de Glauber Rocha, do que das picuinhas de Odete Roitman e Maria de Fátima, de “Vale Tudo”.

Existe aí um paralelo interessante. Na história, a resiliência feminina é confrontada pelo patriarcalismo. No mundo real, o gênero de ação, comumente associado aos homens, toma de assalto o melodrama da romance. Assim, o Globoplay espera difamar uma fatia ampla do público, borrando as barreiras entre série e folhetim.

Independentemente do recorte de gênero, o que importa mesmo é manter o cheiro brasílico, afirma Isadora Cruz. “Enquanto há gente vendo filme de cowboy no meio-oeste dos Estados Unidos, fascinada, admirando a cultura estrangeira, nós temos acontecimentos tão interessantes quanto na nossa própria história. É um universo muito brasílico, que nos ajuda a entender quem somos.”

Folha

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