Duas canoas pequenas de madeira, uma amarela e outra azul, parecem ter sido modeladas para crianças brincarem de faz-de-conta. Um espelho posicionado entre elas revela uma terceira canoa, vermelha, que só existe porquê truque visual e na imaginação de Guto Lacaz, divulgado por borrar os limites entre arte e invenção.
A obra “A Terceira Margem do Rio” faz segmento da exposição “Guto Lacaz: Cheque Mate”, que celebra 54 anos de atuação do artista no Itaú Cultural, em São Paulo, e dá uma boa teoria sobre a sua produção, marcada pela transformação de objetos cotidianos em engenhocas artísticas que desafiam nossa percepção de mundo.
Próximo às canoas, está um talão de cheques, um tanto hoje obsoleto, que está recluso a um sachê de chá —a invenção anedótica deu origem ao nome da mostra, “Cheque Mate”. Outro exemplo é “Eletrolivros”, em que ilustrações de livros ganham vida graças a pequenas hastes motorizadas. Numa delas, o olhar intenso do poeta russo Vladimir Maiakóvski ganha ares de hipnose por um pêndulo que vai e vem sobre sua testa.
“Algumas obras dele nos dão entrada a esse outro universo, das coisas desimportantes ou que não percebemos. Ele desloca o objeto de contexto e acrescenta uma classe poética e reveladora”, diz Kiko Farkas, organizador da mostra, ao lado de Rico Lins.
Aos 75 anos, Lacaz conta, em tom sereno, que ele queria mesmo era ser engenheiro, mas mudou de teoria quando percebeu que não tinha “cabeça matemática”. Continuou comprando edições da revista Mecânica Popular e foi fazer o curso de arquitetura, onde criou o seu primeiro objeto inutilmente artístico, uma estrutura de finas hastes metálicas que lembra um quarto em miniatura, nos moldes de “Le Palais à 4 Heures du Matin”, de Alberto Giacometti, em sua período surrealista.
Nas fotos em que aparece trabalhando ou apresentando alguma de suas invenções, costuma vestir camisa e gravata, porquê um membro do Kraftwerk, grupo teuto que lançou as bases da música eletrônica na dezena de 1970.
Já Lacaz ressignifica eletrônicos. “Sempre gostei de montar e desmontar coisas”, lembra. De liquidificadores a tocadores de fita, qualquer máquina era um corpo a ser sincero e desmembrado para a compreensão de sua anatomia. Se erra, é porque faz as coisas pela primeira vez.
Foi o que aconteceu há 35 anos, quando Guto Lacaz fez uma instalação de cadeiras flutuantes no lago do Ibirapuera —que afundaram.
Uma vez que designer, inverteu a lógica de que um objeto estético precisa ser útil, porquê faz na série “Pares Ímpares”, na qual itens similares são colocados lado a lado para interagir e enganar o olhar de quem observa— porquê uma boca pintada de vermelho e uma projéctil de fuzil, que parece um batom.
Uma vez que um historiador do cotidiano, foi ilustrador da revista Caros Amigos e da antiga poste de Joyce Pascowitch, neste jornal, com desenhos que zombavam do óbvio e encontravam perdão em pequenos acontecimentos da vida, um artifício que herdou de quadrinistas porquê Ziraldo e Onça, que tentava imitar quando menino, e que o aproxima de desenhistas da The New Yorker, célebre revista americana.
Esse humor migrou também para as suas engenhocas. “Eu não sabia, mas o que eu estava fazendo era o que os dadaístas faziam. Peças que têm concepção, mas são engraçadas” diz. E, porquê os artistas cinéticos, Lacaz apostou nas ilusões de movimento e de ótica.
Não por possibilidade, ele já foi chamado de professor Pardal, personagem da Disney que inventava coisas malucas. Há um quê de animação em sua obra também, quando personagens e rostos ganham movimento. “O objeto [criado] é estético, mas também tem um uso. Ele entretém, pode ser vendido, ensina, diverte, registra uma estação. É um resultado cultural que não tem função prática, mas é referto de funções”, afirma.
Entre seus métodos, está o que ele labareda de “convívio lúdica” com um objeto, praticamente uma vanguarda em tempos que a lucidez sintético promete banir o trabalho manual.
“Paladar muito de fazer coisas com as mãos, eu sou artesão”, afirma Lacaz. Ele dá o exemplo do papel higiênico, levado por ele até seu ateliê, onde foi encarado por qualquer tempo. “O papel higiênico é bonito. Ele é um cilindro branco, macio, de proporções gregas, tão elegante. Mas ele tem um término trágico.”
Depois de conviver com o item, deu a ele uma novidade vida. O prisioneiro dos banheiros virou a base de um pantalha e mudou de lado no que o artista labareda de “luta de classes dos objetos”, em que vassouras, baldes e ferramentas não têm destaque numa vivenda.
Apesar de já ter sido convidado a fazer exposições em galerias porquê a paulistana Raquel Arnaud, Lacaz não se destaca no mercado da arte. “Ele não vende muito, do ponto de vista mercantil não tem tanta presença. Mas o reconhecimento artístico é unânime”, diz Rico Lins, um dos curadores.
O motivo, segundo ele e Kiko Farkas, também curador, é que as obras de Lacaz se aproximam mais das artes gráficas, pouco apreciada por galerias, e não são feitas com materiais nobres. Aliás, o humor “não é muito muito visto no mercado da arte”, e o artista não segue só um eixo de atuação.
Se é assim, é porque as ideias chegam e ele faz o que dá na telha. “Eu faço para mim. Por vaidade você quer mostrar, compartilhar o trabalho com mais pessoas. Se as pessoas gostarem e vender, melhor ainda.”
