Em 2014, Jandira Magdalena dos Santos Cruz, aos 27 anos, perdeu a vida ao se sujeitar a um monstro ilegal no Rio de Janeiro. Mulher de baixa renda e de família evangélica, Jandira já era mãe de dois filhos: o primeiro, parido logo posteriormente completar 14 anos, e o segundo, aos 17. O procedimento, realizado em condições precárias —apesar de ela ter pagado R$ 4.500—, resultou em complicações que foram fatais.
Para ocultar o ocorrido, o grupo que operava a clínica deu um tiro em sua cabeça, desmembrou seu corpo, arrancou seus dentes e carbonizou seus sobras dentro de um sege, na tentativa de encobrir o violação e simular uma realização.
Mais tarde, descobriu-se que o varão que realizou o monstro era um falso médico. Segundo o magistrado que condenou o grupo, “valeram-se da vulnerabilidade de mulheres que, muitas vezes em situação de desespero, submetiam-se à ‘clínica’. Além de realizarem uma atividade ilícita, a quadrilha operava com um cirurgião sem diploma, sem qualquer zelo com higiene e assepsia, instaurando um verdadeiro talho humano, expondo inúmeras mulheres a risco. Tudo visando o lucro fácil”.
Complemento o juiz: visando um lucro fácil e se valendo de uma proibição criminosa imposta pelo Estado brasílio. No caso de Jandira, o Estado já lacuna de partida quando obriga uma pequena de 14 anos a ser mãe.
Segundo a ONG Girls not Brides, o Brasil possui 2,2 milhões de meninas menores de idade casadas ou em união fixo, o que representa aproximadamente 36% da população feminina brasileira inferior dos 18 anos. Isso é um paradoxal, um violação cometido todos os dias e que prejudica a vida de meninas e mulheres.
Porém, ainda assim, parlamentares são cínicos o bastante para dizerem frases porquê “é só usar camisinha” ou “ninguém mandou transar”. Ora, uma jovem tem maturidade para uma decisão porquê essa? E mais, ainda que se diga que sim, e os casos em que homens forçam a gravidez nas mulheres, porquê ficam?
Esse mal atinge qualquer mulher fértil em qualquer idade. Nem estou falando exclusivamente de gravidez resultante de estupro por penetração não consentida —que, ainda assim, é objectivo de parlamentares que querem obrigar a mulher a levar adiante a gravidez imposta pelo estuprador.
Refiro-me a outra situação: mulheres vítimas de “tentativa de engravidamento” ou de “engravidamento consumado”. Estabelece-se um patamar de discussão que criminaliza o varão que retira a camisinha no meio do sexo e ejacula sem o consentimento da mulher. Ok, isso é repreensível e é violação. Mas se esquece que o padrão é tão insignificante que a veras é de homens que se recusam a usar preventivo. Desconfio que uma menor secção deles alcance o estágio de violência do tirar a camisinha “no meio” do sexo, pois a maior secção sequer a usa.
Os homens que escreveram o Código Penal chamaram algumas dessas hipóteses de “fraude sexual”. Inclusive, segundo decisões judiciais e protocolos de segurança e de saúde, o violação de fraude sexual é justificativa para monstro lítico.
Porém, “fraude sexual” é um nome eufemístico e não comunica propriamente, pois sugere enganar alguém para obter sexo, o que de indumentária ocorre e merece discussão. Porém lacuna em investigar o objetivo específico de muitos desses atos: forçar a gravidez.
A inconsequência é, de indumentária, um privilégio do patriarcado (existe “engravidamento culposo”?). Mas sabemos que, muitas vezes, os homens medem exatamente o que estão fazendo e o que pretendem com aquilo. E sabemos dos engravidamentos consumados por libido de controle, por sentimento de posse sobre a mulher, entre outros motivos. Vemos mulheres ao longo da vida serem atingidas por esse mal.
Foi pensando nisso que deparei com uma reportagem desta Folha revelando que o Hospital da Mulher do Estado de São Paulo, o maior meio de saúde especializado no atendimento à mulher da América Latina, tem recusado a realização de abortos legais em casos de fraude sexual, pois não reconhece essa justificativa para a interrupção da gravidez.
Valendo-se da ilegalidade porquê forma de tratar a cidadã, o hospital aceita a violência sexual porquê motivo vinculante à gravidez e ao parto. Na prática, reencaminha mulheres a açougues humanos, porquê o que vilipendiou Jandira.
Essa ilegalidade vinda de onde se deve zelo às mulheres deveria ensejar uma investigação pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. Finalmente, quem deu a ordem para que o monstro lítico não fosse realizado nesses casos? E quem a obedeceu? As respostas deveriam levar a uma denúncia e ao encolhimento dos responsáveis do serviço público, entre outras consequências. Porém, o mais provável é que Ministério Público siga omisso.
Seguimos não avistando esperança no horizonte. Enquanto países vizinhos já descriminalizaram o monstro, os direitos das mulheres no Brasil seguem sendo moeda de troca na política dominada por homens, sejam de esquerda, sejam de direita.
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