Ideia De Superioridade Militar dá Margem A Golpismo, Diz Pesquisadora

Ideia de superioridade militar dá margem a golpismo, diz pesquisadora

Brasil

O Tropa Brasílico é um ator político extremamente relevante na história brasileira. Militares dessa força armada instituíram a República (1889), foram protagonistas na Revolução de 1930 que pôs termo à República Velha, depuseram Getúlio Vargas (1945) e estabeleceram a longeva ditadura iniciada em 1º abril de 1964 com o golpe contra o presidente João Goulart (1919-1976).

A quase onipresença dos militares sempre foi objeto de estudos de historiadores e cientistas sociais brasileiros e estrangeiros. Com o governo de Jair Bolsonaro, acadêmicos, intelectuais e jornalistas voltaram a refletir sobre o papel dos militares no país. Com a tentativa de golpe apurada pela Polícia Federalista e em estudo na Procuradoria-Universal da República, especialistas indagam sobre a formação dos militares – porquê, por exemplo, construíram as noções e valores sobre democracia e Estado de Recta.


Brasília (DF) 27/11/2024 -A cientista política, Ana Amélia Penido.
Foto: Ana Amélia Penido/Arquivo Pessoal
Brasília (DF) 27/11/2024 -A cientista política, Ana Amélia Penido.
Foto: Ana Amélia Penido/Arquivo Pessoal

A observador política Ana Amélia Penido lançou livro sobre a formação dos militares – Ana Amélia Penido/Registro pessoal

A instrução dos militares brasileiros é objeto de estudo da pós-doutoranda em ciências políticas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ana Amélia Penido Oliveira. A pesquisadora está lançando o livro Uma vez que se Faz um Militar? A Formação Inicial na Liceu Militar das Agulhas Negras de 1995 a 2012, pela Editora Unesp.

Em entrevista à Sucursal Brasil, a pesquisadora aponta que no Brasil existem quatro sistemas de ensino – um do Tropa, um da Marinha, um da Aviação e um social – e que somente leste último é subordinado ao Ministério da Ensino (MEC). “A instrução militar tem que ser subordinada ao mesmo sistema de ensino que os civis”, defende.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida pela autora à Sucursal Brasil:

Sucursal Brasil: Professora, quando vieram a público os indícios do envolvimento de militares de subida patente do Tropa na tentativa de golpe depois as eleições de 2022, alguns analistas apontaram que há problemas na formação acadêmica e profissional dos quadros das Forças Armadas. Segundo eles, isso se demonstraria em visões de mundo bastante particulares. Em qualquer momento, a senhora percebe reflexos dessa maneira peculiar de enxergar a verdade na tentativa de golpe?
Ana Amélia Penido: Eu acho que tanto a tentativa de golpe quanto a resistência ao golpe têm relações com a formação, sobre porquê as escolas militares funcionam. A formação militar é distinta da social em muitas dimensões. Talvez a principal delas seja a dimensão do internato, eles têm todo tempo controlado pela escola. Dormem na escola e acordam na escola. Não têm margem de autonomia para escolher o que vão fazer, a que horas vão fazer. Toda a rotina é controlada. Quando entram na escola militar, passam a ter outro nome, o nome de guerra. Eles recebem fardamento e têm o cabelo desunido. A origem das escolas militares não é lição de balística ou de outra material. Uma vez que explica o professor [e antropólogo] Celso Castro, a origem do ensino militar é aprender porquê ser um militar.

Resulta disso a questão: o que é esse militar em uma democracia, se a construção da identidade porquê tal é baseada na diferenciação do social? Aprendem ‘ser militar é assim, ser social é assado.’ Depois desse processo de diferenciação, cria-se o sentimento de superioridade: ‘ser militar é assim, e é melhor do que ser social, que é assado.’ Isso às vezes vai surgir em comentários supersutis. Vou dar um exemplo que é manante, eles dizem que, ‘nas universidades públicas, os banheiros estão todos pichados’ e que ‘ninguém cuida do espaço, tem rabiscado na parede. Cá [na escola de formação militar] não, está tudo limpinho, branquinho, pois as pessoas cuidam do envolvente em que elas estão.’ Esse não é um observação somente sobre as diferenças. É um observação valorativo. Implícita está a teoria de que o social é subalterno ao militar na capacidade de cuidar do espaço em que está.

Sucursal Brasil: Mas porquê isso deriva no golpismo?
Ana Amélia Penido: O que pode terebrar espaço para o golpismo é a teoria de superioridade, que se desdobra na teoria de que ‘tenho os meus valores, a minha forma de organização, a minha maneira de ver o mundo, e essa minha maneira deve ser imposta ao restante. Porque ela é melhor.’ As escolas militares são espaço de autorreprodução simbólica. Por isso, toda vez que ouço qualquer observação no sentido de ‘ah, mas as novas gerações são diferentes das antigas’, eu falo: ‘muita calma nessa hora.’ A origem, essa forma de organização, esses valores, essa intervalo entre o mundo social e o mundo militar, se mantém.

Sucursal Brasil: A senhora pesquisou a formação dos oficiais do Tropa Brasílico na Liceu Militar das Agulhas Negras (Aman). Na Marinha e na Aviação, o golpismo seria dissemelhante?
Ana Amélia Penido: Eles são diferentes na própria formação. Isso não é só no Brasil. Em outros países, também. Normalmente, a Marinha e a Aviação são mais próximas dos civis, principalmente por razão da dimensão tecnológica. Essas duas forças precisam de muita tecnologia em seus navios, submarinos e aviões. Esses recursos exigem capacitação social muito grande, principalmente nas áreas de engenharia. Isso acaba por forçar maior interlocução civil-militar. Se a gente fosse pensar nessa lógica, uma receita para evitar o golpismo seria ter mais esse tipo de interlocução, onde civis e militares se encontram para conversar, edificar coisas em generalidade e ter desafios reais em conjunto, porquê o desenvolvimento de tecnologia vernáculo, onde um grupo não pode desenvolver sem o outro.

Sucursal Brasil: Em um cláusula acadêmico, a senhora e as demais autoras chamam a atenção para o vestuário de que as disciplinas de ciências exatas são minoritárias no currículo da Aman. Perdem para as disciplinas de ciências humanas e perdem de goleada para as chamadas ciências militares.
Ana Amélia Penido: Sim. Por isso eu fiz essa divagação sobre a Marinha e a Aviação. O caso da Aviação é ainda mais egrégio, porque eles se formam porquê aviadores e também vão se formar porquê administradores. É outro perfil mesmo. Com relação ao Tropa, a Aman quantifica tudo. Para se formar lá, o número de horas-aula é maior do que o necessário para se formar em medicina na USP ou na Unicamp. O tempo das disciplinas de ciências humanas aumentou por razão da aprendizagem de idiomas. Geralmente, quem fala em mudança de currículo da formação dos quadros do Tropa está falando naquelas horas-aula específicas em que o aluno está sentado na cadeira em sala de lição ou em uma palestra. Essas pessoas costumam pensar que, se incluir direitos humanos ou uma disciplina sobre relações civis-militares, esse problema do golpismo vai estar resolvido. Não é muito assim. Eles estudam recta humanitário internacional, por exemplo.

Para entender porquê um militar se torna um militar, porquê aprende sobre jerarquia, e sobre ter disciplina, é preciso levar em consideração outras atividades de que os cadetes participam enquanto estão na Aman. Vou dar um exemplo. Todo mundo já deve ter observado ou tem em mente aqueles momentos em que hasteiam bandeira ou marcham pra lá e pra cá. A repetição desses atos e exercícios não é porque não saibam marchar. Faz segmento desse processo de aprender jerarquia e disciplina. Estão aprendendo o que é ser o militar. Uma vez que disse, se não me miragem, o professor Celso Castro, ‘é quase uma segunda pele’. Eles não deixam de ser militares nem quando são reformados – na linguagem social, quando se aposentam. É uma segunda pele que adquiriram depois de anos de convívio nos quartéis.

Sucursal Brasil: A senhora afirmou que tanto a tentativa de golpe quanto a resistência ao golpe têm relações com a formação. Em que medida o corporativismo incorporado influenciou nas duas atitudes?
Ana Amélia Penido: Nas escolas militares, os alunos são submetidos a situações extremamente difíceis, tensas e fisicamente desgastantes, porquê permanecer muitas horas sem dormir, fazendo guarda, ou fazer longas caminhadas e marchas de dias, até sob chuva. Nessas situações, constroem laços de camaradagem fortes. Quando o Bolsonaro convocou quadros para o governo, trouxe gente da turma com quem conviveu na Aman [no período de 1974 a 1977]. É uma turma mesmo. As turmas formadas na Aman têm encontros anuais. São laços e vínculos muito fortes. Independentemente de onde forem servir durante a curso militar, vão carregar isso para o resto da sua vida. Os kids pretos não são somente egressos de um curso de operações especiais. Os kids pretos são um código de informação que gera identidade automática. Passaram por experiências muito difíceis, isso os torna diferenciados. É um proporção de intimidade, de identidade que vai para além do curso.

O que aprendem em lição ou em palestra tem dimensão secundária na formação dos militares. A dimensão principal é essa da identidade, que é formada dentro das academias. Depois desse sentimento de diferenciação, há o sentimento de superioridade, e aí, por termo, alguns grupos podem ser levados a pensar essa lógica: ‘já que eu sou melhor, logo deixa eu te ensinar porquê é que faz.’

Sucursal Brasil: A sociedade deveria se preocupar com o que se aprende nas escolas militares? Os currículos deveriam ter o crivo do Ministério da Ensino?
Ana Amélia Penido: Eu entendo que não só os currículos. A instrução militar tem que ser subordinada ao mesmo sistema de ensino que os civis. No Brasil, a gente tem quatro sistemas de ensino. Um do Tropa, um da Marinha, um da Aviação e um social. Somente leste último é subordinado ao MEC. Essa autonomia foi garantida na Constituição Federalista e referendada na Lei de Diretriz e Bases da Ensino Vernáculo. Se não me miragem, o [historiador] José Murilo Roble usava sentença ‘uma pátria dentro da pátria’ para enfatizar que os militares se organizam autonomamente.

Sucursal Brasil: A formação dos militares superlativiza o papel do Tropa na história do Brasil? Por exemplo, aprendem que o Tropa teria se originado ainda no tempo de colonização portuguesa, no século 17, quando os holandeses foram expulsos do Brasil?
Ana Amélia Penido: Isso está nos documentos do Tropa. O promanação da força com a Guerra de Guararapes. [A primeira batalha teria ocorrido em 19 de abril de 1648. Dia 19 de abril é Dia do Exército.] Há o mito, inclusive, de que o preto, o indígena e o branco português se uniram para poder expulsar o invasor holandês. Nesse caso, está amplamente comprovado que essa memória foi inventada posteriormente quando se precisava, na verdade, dar um significado para o Tropa. Essa memória tem uma função fundamental, que é mostrar que o Tropa nasceu antes do Brasil. Além de superiores, os militares seriam anteriores, seriam fundadores na pátria. Seriam a única instituição vernáculo que é permanente.

Eles conseguem inventar tradições de uma maneira incrível. Guararapes é um exemplo, mas vamos pegar a Aman. Qualquer força armada do mundo quer se mostrar moderna, mas a Aman foi construída no formato de um forte. Os castelos foram um meio de resguardo do período medieval. Funcionou enquanto não tinha pólvora. A fundação, no entanto, remete à teoria de tradição. O novo e o velho no Tropa Brasílico se combinam. Os militares podem participar de uma superdiscussão sobre o uso de drones e, ao mesmo tempo, ter gente referendando a tortura, enquanto tática de extração de informações. Temos uma força querendo atuar globalmente através das missões de sossego, mas que, ao mesmo tempo, constrói um forte.

Sucursal Brasil: Em um cláusula acadêmico, a senhora e as suas colegas discutem se o nosso oficialato é exatamente uma representação da população brasileira, porquê descreve a Estratégia Vernáculo de Resguardo. Qual é o perfil dos nossos oficiais do Tropa?
Ana Amélia Penido: Quando o Tropa fala que [é] a imagem da pátria, é a imagem inclusive classista. Quem se torna solene são as camadas médias e altas da população, não as altíssimas. Quem faz serviço militar obrigatório nesse país é pobre. O solene normalmente é uma curso pública, com bons vencimentos. Os praças [soldados, cabos, sargentos, subtenentes] têm origem em famílias que enxergam no recrutamento militar obrigatório uma forma de prometer aos seus filhos a sustento básica.

Sucursal Brasil: Um estudo do Ipea aponta um poderoso alinhamento entre Brasil e os Estados Unidos em cooperações militares. Que influência têm as Forças Armadas norte-americanas sobre nossa resguardo?
Ana Amélia Penido: Eu tenho um cláusula em que dialogo com esse estudo. Essa influência é profunda, vem desde a Segunda Guerra Mundial. Ela ocorre por meio de cursos, por meio de parcerias e cooperações. É um nível de submissão enorme. Não somente em termos materiais, no fornecimento de equipamentos. É um nível de submissão doutrinário. Pensamos a guerra da mesma forma. Eventualmente, aparece uma ou outra dissidência.

A gente viu isso, por exemplo, quando os Estados Unidos estavam levando a cabo a guerra contra o terror [após o 11 de setembro, no governo George W. Bush] e cá no Brasil alguns segmentos estavam reticentes. Aí os próprios Estados Unidos deram uma repaginada, e para a América Latina predominou a guerra contra as drogas. Passamos a partir daí a empregar os militares cada vez mais domesticamente. Recentemente, [em] uma pesquisa na Aviação sobre com quais países o Brasil deveria se recitar, a resposta unânime eram os Estados Unidos e em segundo lugar Israel. A China sequer foi mencionada, embora tenhamos um concórdia de cooperação aeroespacial com os chineses há mais de 30 anos.

Fonte EBC

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