Ilessi reconta a história negra com 'atlântico negro' 02/05/2025

Ilessi reconta a história negra com ‘Atlântico Negro’ – 02/05/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Quando Ilessi escolhe batizar seu disco de “Atlântico Preto”, ela não está mirando num lugar, numa ponte, num mero espaço físico de travessia entre África e Américas. Enfim, oceano é, sobretudo, movimento. “Me mantive leal à teoria de Paul Gilroy [sociólogo inglês que criou o conceito ‘Atlântico Negro’]. Ou seja, estou falando da cultura negra diaspórica, mas não estou pensando em origem. É mais movente. É um pouco que vem de qualquer lugar, mas se mistura e se transforma. Não paladar de estabelecer bordas ou fronteiras”.

No disco e no show que já passou por Rio de Janeiro e São Paulo, esse território movente se materializa num repertório que inclui Milton Promanação, Clementina de Jesus e cantos do Preto Fugido, autopopular tradicional de Acupe, província de Santo Amaro da Purificação. Mas não somente: boa secção é material próprio, ou seja, músicas de Ilessi e de compositores porquê Marcelo Galter, Luizinho do Jêje, Iara Rennó, Sylvio Penedia e Thiago Amud.

Em “Atlântico Preto”, portanto, Ilessi aponta referências de negritude muito marcadas, o que aparece nos títulos de canções, porquê “Navio Negreiro”, “Oxum (Ora ie ie ie)/ Oxum (Oxum bai le ô)” ou “Omolu”. A riqueza dessas referências está em diálogo com inventividades de outras naturezas —filhas de fontes porquê Hermeto Pascoal e Clube da Esquina.

Nascida em Campo Grande e criada em Jacarepaguá, bairros da zona oeste do Rio de Janeiro, Ilessi cresceu com as marcas sociais de mulher, negra e suburbana. E construiu sua curso afirmando de maneira fundíbulo essas marcas —ao mesmo tempo em que desafia as expectativas sobre elas.

Desde o início foi assim. “Meu primeiro disco, ‘Brigador’, tem dez faixas”, conta Ilessi. “Quatro são sambas. Tem baião, valsa, bolero… E sempre eu o via nas lojas na prateleira de samba. Ou seja, você vê uma cantora negra na cobertura de um disco e diz: samba”.

A música de Ilessi, portanto, não se rende às classificações vindas de um olhar superficial. Quem espera cacoetes vazios de afrofuturismo encontra uma estética fundamentada em vivência e reflexão —doutoranda em música na Unicamp, a Universidade Estadual de Campinas, ela desenvolve a tese “A improvisação das vozes negras diaspóricas de Clementina de Jesus e Tania Maria”.

Quem espera dela um “quina intuitivo” da negra periférica encontra a técnica apuradíssima. Quem, ao se deparar com esse refinamento, imagina um reverência à limpeza que se projeta na “grande música popular brasileira”, se depara com uma voz que desafia tudo isso com vigor punk e moral de terreiro. É rima de Elis Regina e Clementina.

Mais do que uma asseveração de raízes, a negritude da música de Ilessi se fundamenta na teoria de liberdade, porquê ela própria escreve na contracapa do vinil de “Atlântico Preto”: “Música negra, porquê nos ensina Amiri Baraka, é mais do que a música feita pelos negros, mas a música que tem em sua núcleo a liberdade da improvisação. Improvisação de ser, estar e agir no mundo, que nós negros, há séculos submetidos a tanta vexame, apropriação, invisibilidade, desigualdade e racismo, sabemos muito o que é”.

Em entrevista, Ilessi lança um exemplo que ilustra sua liberdade: “Tem uma música na qual faço um negócio na voz que é um efeito porquê se fosse um golpe de goto, um quina agudo picotado. Fiquei pensando de onde surgiu isso. Um tempo depois me lembrei de uma gravação de Yoko Ono, acho que é ‘Kiss Kiss Kiss’, na qual no final ela começa a fazer isso. Ou seja, a referência vem do lugar mais improvável”.

A sonoridade de “Atlântico Preto” é construída por Ilessi ao lado de músicos que se afinam com essa liberdade: Marcelo Galter (piano e teclados), Ldson Galter (plebeu) e Reinaldo Boaventura (percussão). Também em sintonia está Sylvio Penedia, que assina com Ilessi e Marcelo a direção artística do álbum — e, unicamente com Marcelo, a produção músico.

Juntos, eles se lançam no groove de ancestralidade moderna e modernidade antepassado de “Cativeiro de Iaiá/ Evém o Nego Paturi”, sobre o qual a cantora explora um quina rasgado inspirado pelo de Dona Santa, responsável pelo resgate da tradição do Preto Fugido. Em “Trastevere”, de Milton e Ronaldo Bastos, interpreta com força sóbria sobre um remendo que reinventa a dissonância do Clube da Esquina. Já “Ofídio Coral”, de Marcelo Galter, é uma melodia de saltos inesperados que ela executa em vocalize que combina precisão e calor —assim porquê em “Seca tatu”, formação da própria cantora.

Sexto disco de Ilessi, “Atlântico preto” a firma numa cena de artistas que tem repensado a legado negra na música brasileira para além dos mitos que a cercam —e dos fetiches de identidade que dominam os dircursos no indie e no mainstream. Mais importante, tem se tempestivo dessa legado para lançá-la no porvir. Nomes porquê Juçara Marçal, Preto Leo, Iara Rennó e Caxtrinho— todos traçando diálogos e colaborações entre si.

“Eu fui formada por um grupo que contava a minha história”, reflete a cantora. “Mas acho que a gente está numa transição pro momento em que iremos recontar essa história negra. Quem tem um olhar crítico está pensando mais nessa presença. Porque não é mais representatividade. É presença. Nós estamos presentes”.

Folha

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