“Vai se amar. Vai se amar. Vai se amar”. “Meu útero é sagrado. Mas é secular”. “A chuva toma a forma do corpo”. “Obedeça às paredes”. “Paulo, te senhoril”. “Rebeca, saudades”. “Lembra do meu ósculo?”. “Democracia já”. “Não deixe o porvir repetir o pretérito”. Os passos apressados fazem os olhares misturarem as palavras, as formas e os pensamentos no caminhar de inferior do Eixo Rodoviário de Brasília, a principal avenida que interliga as asas do Projecto Piloto.
Além das histórias oficiais, que remetem a uma paisagem arquitetônica diferenciada, outro olhar pode ser explorado a partir de um cenário de intervenções urbanas. Brasília, a jovem que completa 64 anos neste domingo (21), também pode ser encontrada na multiplicidade de expressões que buscam definir belezas e desigualdades sob o mesmo firmamento.
O caminhar de inferior
Sob o mesmo firmamento, ou sob o mesmo teto. As passagens por inferior do Eixão são verdadeiras galerias artísticas de grafites, pichações e recados, de paixão ou de dor. “Mas, moça, se dores fossem flores, quão florido seria teu coração?”, questiona um verso sem assinatura na passagem próxima à quadra 207, na Asa Setentrião. A babá Carolina Sales, de 33 anos, olhou para os versos e teve a certeza de que o coração estaria repleto de margaridas, rosas e azaleias. Ela é moradora da cidade de Santo Antônio do Desvelado (GO), no Entorno do Província Federalista, a duas horas de ônibus de onde trabalha.
Na rotina dela, o caminhar apressado pelas passagens subterrâneas é somente uma segmento do trajectória. Precisa passar para pegar o ônibus. No caminho, pensa nos quatro filhos que deixou em lar para poder trabalhar e cuidar de outras duas crianças na lar de uma família que não é a sua. “Fico com o coração apertado sim. Faço esse mesmo caminho há cinco anos e sempre passo por cá. Não consigo ler ou ver tudo. Mas acho bom. Ou por outra, não vou me malparar a terçar cá por cima, pelo Eixão”
Ela tem razão de ter o receio. Segundo o Detran-DF, de 2020 a 2023, oito pedestres e um ciclista morreram ao tentar terçar a avenida, que tem velocidade máxima de 80 quilômetros por hora. Porém, de entendimento com levantamento do Instituto de Pesquisa e Estatística do Província Federalista, mais de 45% dos entrevistados que moram nas redondezas da avenida, têm temor de instabilidade. “Por isso que sempre ando rápido”, diz a babá, que sonha ter uma clínica de massagista. Ela acha triste, à noite, ter pessoas em situação de rua que escolhem as passagens porquê teto e dormitório.
Na mesma jornada por essa passarela de intervenções urbanas, a facilitar de limpeza Jane Silva, de 54 anos, diz que faz o mesmo caminho desde 2019. Ficou pensativa diante do grafite de um bicho do compacto. “Eu já tentei interpretar. Ainda não consegui entender que bicho é esse. Mas, porquê é na ponta da escada, conforme vou chegando perto do traçado significa que estou perto do meu ponto de ônibus”. Ela mora na região administrativa de Samambaia, a uma hora do trabalho.
Olhares para cima
Sob a luz do firmamento de Brasília, segmento do núcleo mercantil pode ser admirado, porquê os dormentes do viaduto da Galeria dos Estados que são porquê molduras de telas. Grafites de diferentes autores e temáticas emolduram também o sonho da desempregada Cristina Roble, de 41 anos de idade.
Com uma placa que ergue com uma das mãos, pede qualquer ajuda. Com a outra mão, segura a vasilha para que alguém compre um docinho. Ela deseja conseguir qualquer dia comprar um carrinho para vender açaí. Atualmente, mora de obséquio com dois filhos na lar de um parente em uma quitinete na Asa Sul. O viaduto da Galeria dos Estados foi pintado por mais de 100 artistas em 2021, durante evento de grafite. As pinturas deslumbram quem passa pelo lugar.
Cristina é mãe solo e pensa que precisa sozinha edificar sua própria paisagem. “Fico cá em pé por três horas. Essas obras me fazem companhia. Me fazem refletir sobre a minha vida”. Imagens de animais do compacto, grafites, versos de paixão… “Eu também queria redigir um livro. Já sonhei ser pedagoga. Hoje, queria ter um trabalho fixo porquê doméstica. Mesmo assim, eu senhoril Brasília. É a minha cidade. Mesmo quando estou com problemas, esses desenhos me fazem muito”.
Envolvimento
Uma das artistas grafiteiras que trabalha com cenários de paisagem é Brixx Furtado. Ela começou a pintar com 13 anos de idade. “Eu sempre fui muito tímida. Eu vi no grafite uma possibilidade de poder me aproximar de outras pessoas”. Diz que, ao pintar na rua, se envolver com as pessoas é inevitável. Ela começou com a prática em 2010. “Passei a saber outros artistas. O grafite acabou abrindo portas para que eu pudesse estar em outros espaços. Fui convidada para participar de exposições e entrei no cenário da arte de outra forma”, afirma.
Brixx entende que a cidade pode ser uma grande tela, já que as galerias de artes plásticas nem sempre são acessíveis. “A arte urbana é muito democrática. Porquê sempre fui uma mulher periférica, a rua é onde me reconheço”. Um dos lugares para reconhecer o trabalho da artista é a W3 Sul, uma avenida que, antes dos shopping centers da cidade, funcionava porquê um dos mais importantes pontos comerciais da capital. “Era um lugar muito fácil para eu poder estar. E a W3 tem muita porta de transacção. Hoje, quase todas as portas são grafitadas. Mas era um espaço muito tranquilo para pintar”.
Ela recorda que a avenida era ponto onde muitos grafiteiros gostavam de ir pintar em dia de domingo de manhã. “Um lugar com inferior policiamento. Portanto, a W3 ficava muito deserta”. Mas aponta que, nos últimos anos, os grafiteiros passaram a ser mais hostilizados pela polícia. “Eu já tive situações onde chegaram apontando a arma. E fui levada no camburão. Apesar de o grafite ter se popularizado e pretérito a ser visto porquê menos marginal, apesar de ser completamente proibido, existem muitas pessoas com o pensamento reacionário”.
Multiplicidade
Foi um pensamento da grafiteira que deu título à pesquisa de doutorado da professora, historiadora e museóloga Renata Almendra: “A cidade toda é minha”. “Eu chamo de grafite todo tipo de mediação visual, escrita, desenhada, rabiscada, colada, na cidade. Portanto entra aí realmente essa arte urbana, mas também entra a pichação, os cartazes colados, nesse intuito artístico”, afirmou a professora.
A pesquisadora entende que Brasília é uma cidade muito dissemelhante das demais, que têm feição urbana mais tradicional, porquê São Paulo e o Rio de Janeiro. “Essas cidades têm ruas, esquinas, praças, e, portanto, mais paredes e muros para grafitar”.
Renata entende que é impossível demarcar perfis específicos para as artes e os artistas. “São vários tipos e estilos convivendo ao mesmo tempo. É uma loucura, é um barato. A gente vê a W3 Sul, que é considerada a grande avenida de Brasília. A dinâmica da W3 em relação a essas intervenções urbanas é muito interessante”. Ela lembra que há proprietários de casas e de comércios que pedem a grafiteiros para pintar, a termo de coibir pichações.
A “galeria” W3
Viajar pela avenida W3 seria, portanto, uma experiência dissemelhante, já que, em alguns trechos da via, tornou-se um galeria artístico nas paredes. “Há uma multiplicidade de estilos também, tanto do lado das casas quanto do lado das lojas”, disse a pesquisadora que, para o trabalho, entrevistou 23 grafiteiros. Ela conta que os artistas dizem que preferem ir para o Projecto Piloto, a termo de apresentar seus trabalhos porque têm mais visibilidade, porquê ocorre na W3.
É na avenida que árvores são cobertas por crochês e, na profundidade da quadra 707, da Asa Sul, uma série de obras figurativas nos muros, de tingido que ajudam a iluminar a noite, deixa os moradores curiosos.
No ponto de ônibus, a estudante Rilei Silva, de 18 anos, espera o transporte para Samambaia e admira as obras. Ela lamenta que está desempregada, mas queria arrumar logo uma chance para saber o libido de cursar fisioterapia. “Às vezes, espero o ônibus por 50 minutos. Vejo esses desenhos de [Roberto] Burle Marx (1909 – 1954), ou o [Oscar] Niemeyer (1907 – 1912). Queria saber mais sobre eles”.
Lição na rua
Entre os artistas mais conhecidos no grafite da capital, Daniel Moraes, o Daniel Toys, de 33 anos, expõe suas obras há mais de 20 anos. Graças ao seu trabalho, já foi convidado para estar em mais de 11 países.
“A arte mudou a minha vida. Eu pintei nas ruas aos 13 anos de idade. Eu paladar de levar meu trabalho para lugares que sejam carentes de arte, particularmente nas periferias. Quero espelhar sonhos”. O artista gosta de ressignificar lugares e proporcionar motivações, até em espaços de lixo. “As ruas são minha principal escola”, diz o artista.
Ainda na W3, a desempregada Ana Marques, de 35 anos, concorda com o artista, e diz que a arte a estimula a continuar na luta por um trabalho. Ela reclama que os grafites deveriam ter mais espaço e que poderia ter mais fiscalização para não ter pixação. “Agora de noite, poderia ter mais luz para a gente saber mais”, disse.
Tensões
Para a professora de arquitetura Maria Fernanda Derntl, da Universidade de Brasília (UnB), as intervenções urbanas expressam o modo porquê diversos grupos sociais expressam os fatos do Brasil. “Essa cidade preservada, tal porquê ela foi pensada, também tem problemas. As grandes distâncias entre o Projecto Piloto e as outras regiões são segmento deles”.
Ela considera que as manifestações do grafite e de outras artes são eloquentes ao trasladar tensões na cidade. “Uma das questões é a gente ver o quanto está disposto a entender que o espaço público é lugar problemático e de conflitos. E podem ser sentença da inconstância”, afirmou.
Mãos dadas
Um desses conflitos ocorreu na Vila do IAPI, em 1971, onde residiam trabalhadores da construção social da capital. Eles foram removidos para aquela espaço que se tornou a maior região do Província Federalista, a Ceilândia. Inspirado nessa história, um artista da região, Gustavo Santos, o Gu da Cei, de 27 anos, tem, entre suas obras, uma estátua no lugar intitulada “Sonho de Morar”, que está no meio do mato, já desenvolvido. A forma é de uma mãe de mãos dadas com o fruto. “A missão da arte é incomodar e propor reflexões. As intervenções servem para isso mesmo”, afirma.
Segundo a vendedora Geiciane dos Santos, de 29 anos, que é mãe solo de duas crianças e mora com familiares na região do IAPI, a estátua faz com que reflita sobre a própria vida. Ela recebe um salário mínimo e tem esperança de um dia ter a própria lar. Com um dos seus meninos no pescoço, olhou para a imagem e se reconheceu. “Essa sou eu, né?”.