“Nós praticamente inventamos um cinema para o Brasil”. Assim o cineasta alagoano Cacá Diegues, que morreu nesta sexta-feira (14), resumia a valia de diretores, roteiristas e produtores que, no início dos anos 1960, criaram, no Brasil, o movimento que ficaria sabido porquê Cinema Novo.
“Inventamos uma imagem do Brasil para o cinema. E para fazer isso, não tínhamos uma tradição cinematográfica à qual recorrer”, comentou Diegues ao ser entrevistado, em 2018, no programa Trilha de Letras, da TV Brasil, mantida pela Empresa Brasil de Notícia (EBC).
Um dos últimos remanescentes do grupo que reuniu Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), Paulo César Saraceni (1933-2012), Domingos de Oliveira (1936-2019), Leon Hirszman (1937-1987), Glauber Rocha (1939-1981) entre outros artistas e intelectuais influenciados pela nouvelle vague francesa e pelo neorrealismo italiano, Diegues apostou na força de filmes autorais, de menor dispêndio de produção e que motivassem o testemunha a refletir sobre os graves problemas sociais brasileiros.
“Um filme não muda zero. Ele não é uma arma para mudar o mundo, mas é uma maneira de pensar o mundo de outro modo; de provocar pensamentos mais originais”, refletiu Diegues, durante o bate-papo com o noticiarista e roteirista Raphael Montes, logo apresentador do Trilha de Letras.
Diegues dizia não ser otimista por não confiar que as coisas dariam certas por si só. Para ele, o sucesso era fruto da dedicação e do trabalho. Por isso, dizia ser um sujeito “esperançoso”. “Tenho sempre a esperança de que as coisas deem patente e [a convicção de que] para isso [a gente tem] que passar detrás; fazer para que deem patente.” Receita que aparentemente o ajudou a ocupar prêmios em diversos festivais nacionais e internacionais. E a ser eleito para o assento da Ateneu Brasileira de Letras (ABL) antes ocupado por seu colega Nelson Pereira dos Santos.
Entre as obras mais conhecidas de Diegues estão Ganga Zumba (1964), A Grande Cidade (1966), Os Herdeiros (1969), Xica da Silva (1976), Bye Bye, Brasil (1980), Tieta do Bravio (1996), Orfeu (1999) e Deus é Brasiliano (2002). O Grande Circo Místico (2018) foi seu último lançamento porquê diretor.
>> Assista à íntegra da entrevista de Cacá Diegues ao Trilha de Letras:
Repercussões
A morte de Cacá Diegues, aos 84 anos de idade, repercutiu entre intelectuais, artistas e políticos de diferentes correntes ideológicas. À reportagem da Sucursal Brasil, Raphael Montes, ex-apresentador do Trilha de Letras, disse que o cineasta, aos 84 anos de idade, seguia pleno de vontade de descrever histórias. E sempre atilado às novidades.
“O Cacá aceitou meu invitação para participar do programa porque nós havíamos nos tornado amigos pouco tempo antes, quando eu estava começando minha curso porquê roteirista. Ele me procurou porque queria fazer um filme com uma pegada de suspense, tal qual título seria A Senhora. A teoria era que o filme fosse protagonizado por duas grandes personagens, uma interpretada por uma atriz mais velha e outra pela filha dele, a Flora Diegues, que já estava doente na ocasião. Seria uma forma até de ele eternizá-la, mas, infelizmente, a Flora faleceu, e o filme acabou não acontecendo”, contou Montes, explicando que, com a morte da filha de 34 anos, vitimada por um cancro no cérebro, em 2019, o diretor abortou o projeto.
“O ponto terminou aí. Felizmente, nos tornamos amigos e ele, ao longo dos anos, acompanhou minha curso; sempre que eu assistia a um filme lítico, indicava para ele e trocávamos muitas ideias. E o que mais me marcou foi que ele sempre foi muito atilado ao novo. Ele tinha uma curiosidade quase juvenil e, apesar da idade, não achava que sabia tudo.”
No X (idoso Twitter), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou ter recebido a notícia com “muito tarar”. “[Ele] levou o Brasil e a cultura brasileira para as telas do cinema e conquistou a atenção de todo o mundo. Ganga Zumba, Xica da Silva, Bye, Bye Brasil, e, mais recentemente, Deus é Brasiliano mostram muito muito nossa história, nosso jeito de ser, nossa originalidade. E representam a luta de nosso cinema, que sempre se reergueu quando tentaram derrubá-lo. Meus sentimentos aos familiares, colegas e fãs do grande Cacá Diegues.”
A ministra da Cultura, Margareth Menezes, usou a mesma rede social para prestar uma homenagem à memória do cineasta. “O Brasil se despede hoje de um dos grandes mestres do nosso cinema. Cacá Diegues, cineasta genial e um dos pilares do Cinema Novo. Sua obra foi marcada por grandes filmes e ajudou a descrever a história do nosso povo com sensibilidade. Minha solidariedade à família e aos amigos.”
Ex-ministro da Cultura e também membro da ABL, o músico baiano Gilberto Gil também comentou o falecimento do companheiro acadêmico. “Descanse em sossego, grande camarada imortal, Cacá Diegues”.
A atriz Zezé Mota, que estrelou o filme Xica da Silva, relembrou a experiência de trabalhar com o diretor.
“Há 49 anos, conseguimos levar mais de três milhões de brasileiros ao cinema – falo de uma quadra em que não existia internet no Brasil. Viajamos com Xica da Silva para mais de 10 países e ganhei projeção pátrio e internacional com levante personagem, levei o troféu de melhor atriz em quase todos os principais festivais de cinema do ano de 1976, entre outros prêmios. Xica da Silva é, será sempre minha eterna fada madrinha. Foi fundamental para a construção da primeira grande imagem da “escrava que virou rainha” diante da opinião pública”, comentou Zezé, dizendo ser eternamente grata a Cacá por tê-la “presenteado” com um dos principais papéis de sua trajetória artística.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, e o prefeito da capital fluminense, Eduardo Paes, também se manifestaram por meio das redes sociais. “Cacá Diegues foi referência no audiovisual, representando as dificuldades do povo na tela e deixando grandes obras na história do cinema pátrio”, escreveu Castro.
“Perdemos hoje uma das figuras mais incríveis da cultura brasileira, um ser humano incomparável e iluminado”, acrescentou Paes, compartilhando a conversa que teve com a esposa de Diegues, Renata Magalhães. “Porquê me disse hoje mais cedo a Renata: ‘Cacá viveu lindamente!’ [Ele] vai fazer muita falta, mas sua obra e seus ensinamentos são um legado que não nos deixarão esquecê-lo.”