Talvez não exista filme mais contemporâneo no Brasil do que “Iracema, Uma Transa Amazônica”, que completa 50 anos e estreia mundialmente sua transcrição restaurada agora no Instituto Moreira Salles. Os fatores que concorrem para isso são vários, os mais evidentes são os históricos.
No filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna estamos no “Brasil Grande”, cognome publicitária do que também se chamou “milagre brasiliano”. Ali vigoravam os sonhos dos militares da ditadura, entre eles a nem tão delirante teoria de erigir uma rodovia cortando a Amazônia inteira. Ela se chamava Transamazônica.
A teoria óbvia era de promover o progresso, de perfazer com o tardada de vida representado por floresta, indígenas, fauna, flora e tudo mais. É uma vez que se tudo aquilo fosse uma riqueza inexplorada. Era preciso explorar. Que o diga o mina de Serra Pelada.
Naquele tempo, convém lembrar, os ambientalistas eram com frequência chamados de ecochatos. E o aquecimento global parecia uma coisa muito distante, já para não expor uma fantasia futurista.
Aí entra o cinema. É nesse lugar que Bodanzky e Senna introduziram Paulo César Pereio na pele do caminhoneiro Tião Brasil Grande. Introduz assim a ficção no que poderia ser um documentário sobre a vida à ourela do rio. Tião é um provocador de ficção —falante, fala da grandeza da novidade estrada, de uma vez que representará riqueza (para ele, sobretudo), superação do tardada e tudo mais.
Ao mesmo tempo, existe a vida no rio —pessoas sós ou solitárias, ligadas sobretudo por uma estação de rádio e pelos bordéis. E num deles é que Tião encontra a jovem Iracema, prostituta juvenil, que o acompanhará ao longo de uma secção da trama.
Ocasião para vermos algumas das anomalias locais —do tráfico de madeira ao de pessoas, das queimadas ao roubo de rebanho. Entre outras, vemos Iracema, papel de Edna de Cássia, deixar o bordel para escoltar Tião, depois de um tempo ser largada no meio do zero, conseguir outro lugar para se prostituir, e assim por diante, até ser estuprada. Quanto à qualidade dos homens, Tião incluído, melhor nem comentar.
Podemos dar um salto de 50 anos quase sem transpor do lugar. Mas fora do lugar, de todo modo. Ver imagens de desmatamento, daquela estrada ferindo a floresta, hoje é coisa de dar arrepios.
Podemos imaginar tudo aquilo asfaltado, cidades surgindo nas suas bordas, o desmatamento uma vez que decorrência procedente, assim uma vez que a transformação dos indígenas em operários urbanos, com a devastação de suas culturas, a exportação da fauna e desaparecimento da flora.
É um quadro de distopia padrão, mas poderia também ser chamada de novo normal, caso se implantasse. Simples, esse filme não foi visto no Brasil na quadra, foi obviamente censurado, mas pôde rodear e lucrar prêmios em festivais internacionais.
Pode ser que alguns prêmios tenham a ver com sua temática ou graças à simpatia com que a intelectualidade mundial via a luta contra a ditadura.
Mas não ficamos nisso. “Iracema” surge de um ótimo argumento, sem incerteza —em que tem secção Hermano Penna. O roteiro final se deve a Orlando Senna e não se pode duvidar que tenha sido escrito, ou reescrito, no dia a dia. A Bodanzky coube conduzir a câmera.
E Pereio talvez esteja no seu melhor momento uma vez que ator e, de certa forma, coautor deste filme. Tião Brasil Grande parece ali sua segunda pele, instigando os que estão por perto a falarem, mimetizando a boçalidade brasileira à sublimidade, ofensivo menos contra a ignorância das pessoas com que cruza do que contra a situação em que essas pessoas são jogadas.
Sua pujança e capacidade de improvisação contaminam a todos com que se encontra —contamina no sentido de despertar vida em personagens desencantados—, e de uma vez por todas borra os limites entre ficção e documentário. Por término, existe Edna de Cássia, ótima uma vez que a moça prostituída num mundo cão sem término.
Um filme que foi notável em 1974, 50 anos depois parece que se duplica, fazendo presente encontrar o pretérito, não para o anular, mas para substanciar a qualidade de mito do Eldorado amazônico. Ao mesmo tempo, se reentroniza a floresta uma vez que a mistura misteriosa de reduto de salvação da humanidade —seu pulmão, e coração, e tudo mais— e de objeto do libido de lucro desregrado e, portanto, de sua devastação.