A problemática do chamado instinto materno, que passou a ser discutida recentemente, já teve tempo de ser digerida pelo cinema. O Festival de Cannes, ao menos, deixou isto evidente na seleção deste ano, com filmes porquê “Die, My Love” e “Renoir”.
No último dia de estreias na competição pela Palma de Ouro, um outro título foi adicionado à discussão, “Young Mothers”, ou “jovens mães”, dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne. Com ele, a dupla soma a gravidez na juvenilidade ao seu gabinete de problemas sociais.
Na trama, acompanhamos cinco jovens que moram num abrigo com seus filhos recém-nascidos. Cada uma engravidou e está lá por um motivo dissemelhante, e elas se alternam em cena para mostrar ao testemunha as suas histórias.
Uma delas, por exemplo, abre o longa indo buscar o pai de seu rebento num núcleo de detenção. Eles se beijam, saem para passear com o bebê e ela vai percebendo que aquela fantasia familiar não é compartilhada pelo parceiro, que a troca para trespassar com os amigos.
Outra das meninas vive o oposto. Seu companheiro é devotado, quer edificar uma vida com ela e propõe que eles casem. Uma terceira é coagida pelos sogros a não pedir um teste de paternidade. E por aí vai.
Problema se soma a problema na vida dessas meninas, que também são crianças. Os Dardenne fazem questão de deixar isso evidente, de formas pouco sutis. “Seu bebê está chorando, vá buscá-lo”, diz uma assistente social numa cena. “Eu também estou chorando”, responde a rapariga. “Seu bebê está com rafa”, replica a mulher. “Eu também estou.”
São diálogos um tanto óbvios, longe da inspiração do cinema seminal dos Dardenne, que era habitado por personagens mais complexos, não reduzidos ao lugar fácil de vítima, porquê vem sendo o caso recentemente. Em “Young Mothers”, portanto, não espere ver protagonistas porquê as de “Rosetta” e “A Párvulo”, que lhes renderam duas Palmas de Ouro.
Já há tempos que os irmãos belgas dirigem no piloto automático. Foi assim com sua última vinda a Cannes, há três anos, com “Tori e Lokita”, que lhes rendeu um prêmio próprio, criado pelo júri, apesar de ter sido mal estimado à quadra. Era porquê se recompensassem um cinema do bom-mocismo, que falava sobre a crise migratória com muito sentimentalismo.
Neste cinema voyeurista, chega a violentar sua intenção de mondar qualquer tipo de culpa burguesa, europeia, branca, que seja, ao enquadrar os problemas sociais das classes menos favorecidas da Europa de forma tão rasa e condescendente.
Também encerrando a programação, Kelly Reichardt adotou um ritmo semelhante, lento e sem grandes acontecimentos, em “The Mastermind”. O longa acompanha um varão que decide roubar obras milionárias de um pequeno museu em Massachusetts, nos Estados Unidos de 1970.
Mas conforme as coisas acontecem fora do planejado, fica evidente que os dramas de sua vida são sintomáticos de um país em colapso. Uma vez que em seus filmes anteriores, “First Cow: A Primeira Vaca da América” e “Certas Mulheres”, a diretora americana se debruça com um olhar atilado e quebradiço sobre aflições de pessoas comuns para revelar um quadro da classe média e trabalhadora nos Estados Unidos.
É o segundo filme da competição principal que Josh O’Connor protagoniza. O ator também faz par romântico com Paul Mescal em “The History of Sound”, drama gay que se passa nos anos 1920.
Seu personagem em “The Mastermind”, JB, lembra muito seu papel em “La Chimera”, filme da italiana Alba Rohrwacher que tentou a Palma de Ouro em 2023. Nele, O’Connor dava vida a um ladrão de tesouros arqueológicos nas ruínas italianas. Apesar de ser emocionalmente mais intenso do que JB, os crimes cometidos pelos dois personagens são sintomas de crises existenciais mais profundas.
Em “The Mastermind”, o protagonista leva uma vida confortável e pacata com a mulher e seus dois filhos. Sua profissão e posição social pouco relevante são desprezados pelo pai, varão importante na prefeitura da pequena cidade onde vivem. O rebento não seguiu os passos do pai, e tampouco usou a posição de sua família para subir.
O roubo ao museu, porém, tem raízes mais profundas do que um aporte milionário. Toda a história se passa durante a Guerra do Vietnã. JB tinha ambições maiores, mas falhou, e o clima é de desânimo e desilusão entre os filhos do pós-guerra, aos quais foi prometido um mundo melhor.
Em “First Cow”, Reichardt retratou aqueles que participaram da formação dos Estados Unidos, mas nunca são citados. Agora, ela faz um pouco parecido com as pessoas que continuaram seguindo suas vidas no caos político dos anos 1970 —e que não eram nem soldados, nem manifestantes, tampouco políticos ou artistas.