É um clássico a história de uma vez que Janete Clair chegou à Orbe, onde se tornaria a maior autora da televisão brasileira. Chamada a dar um jeito em uma romance que já estava no ar com mais de século personagens, um roteiro totalmente sem sentido e péssima audiência, ela promoveu um terremoto que só deixou quatro vivos. Para os sobreviventes, criou um novo enredo, que se passava duas décadas depois.
Era o ano de 1967, e Janete, de quem centenário é comemorado nesta sexta-feira (25), já havia se tornado uma reconhecida autora de radionovelas quando foi chamada para chacoalhar a TV. Em 1969, seu marido, o dramaturgo Dias Gomes, iria se juntar a ela uma vez que responsável na Orbe, e ambos seriam pilares da teledramaturgia vernáculo.
Um terremoto não era zero para Janete, que chegou a grafar três novelas simultaneamente. Entre 1967 e 1973, fez oito tramas das 20h consecutivas na Orbe, em uma quadra em que os autores trabalhavam sozinhos, não tinham equipes de roteiristas assistentes, uma vez que hoje em dia. A audiência só subia, e uma delas, “Selva de Pedra”, de 1972, teve um capítulo que atingiu 100% no Ibope.
Na vida real, Janete encarava a morte de dois filhos, um deles com poucos dias de vida e outro com três anos, além de seis abortos, em meio às ameaças da ditadura militar ao marido, célebre membro do Partido Comunista. Com três filhos pequenos, sustentou a mansão sozinha por um tempo, quando Dias estava vetado pela exprobação no teatro e ainda não havia sido contratado pela Orbe.
Sua máquina de grafar resolvia qualquer problema. Depois do terremoto de 1967 —a romance era “Anastácia, Uma Mulher Sem Direcção”— teve de mourejar com um incêndio, esse de verdade, em 1969. Ela já havia escrito o último capítulo da romance das 20h “Rosa Rebelde”, que logo seria gravado, quando a sede da Orbe em São Paulo pegou queimada.
Lá era produzida “A Colmado do Pai Tomás”, das 19h, que teve de ser transferida para Rio. Uma vez que isso, a emissora não iria conseguir por no ar imediatamente uma novidade romance das 20h, e pediu a Janete para prolongar “Rosa Rebelde”. Ela meteu “20 anos depois” na história e fez mais 100 capítulos.
Em 1975, novamente, sua máquina de grafar sem limites salvaria a Orbe depois a explosão de uma explosivo, metaforicamente cá, mas foi uma explosivo e tanto.
Na ocasião, a escritora, que dominava o horário das 20h com uma sequência de sucessos —e já era conhecida uma vez que a “Nossa Senhora das Oito”—, havia sido escalada para fazer uma romance das 19h, horário de tramas “mais açucaradas”.
A mudança seria feita para que Dias Gomes estreasse no horário transcendente, com “Roque Santeiro”. O responsável comunista, que imprimia em suas obras um poderoso tom de sátira social, costumava grafar tramas para as 22h e, prestigiado, foi convidado a produzir a primeira romance das 20h em cores –em 1972, “O Muito-Estremecido”, de sua autoria e exibida às 22h, havia inaugurado as cores nas novelas brasileiras e se tornado um dos maiores sucessos de público e sátira da televisão.
Na véspera da data marcada para a estreia, porém, “Roque Santeiro” foi censurada pela ditadura. Uma proibição abrupta uma vez que aquela, de uma romance pronta para estrear, era inédita. A Orbe pôs no ar uma reprise compacta de “Selva de Pedra”, que, de novo, teve ótima audiência, e precisava fazer uma novidade romance às pressas.
Embora magoada com a mudança para as 19h, Janete se armou de sua máquina de grafar, conforme lembrou Artur Xexéo em uma biografia da escritora, e decidiu: “A romance das oito não vai trespassar cá de mansão. Eu vou grafar”.
Unicamente três meses depois, entrava no ar “Vício Capital”, em que Janete não só utilizou o mesmo elenco de “Roque Santeiro” uma vez que imprimiu na história uma linguagem mais realista, se aproximando do estilo de Dias.
Essa passagem é lembrada pelo músico Alfredo Dias Gomes, fruto do par, no curta-metragem de animação “A Escritora”, que ele lança neste sábado, 26, às 20h, no Cine Joia, no Rio, em homenagem ao centenário da mãe.
Será também o lançamento de um single em que Alfredo grava uma versão jazzística da música clássica “Clair de Lune”, a preferida de Janete, que inspirou o seu nome artístico. Nascida em Conquista, em Minas Gerais, filha de uma modista portuguesa e de um mercante libanês, ela se chamava Jenete Stocco Emmer —Jenete mesmo, e não Janete, em razão do sotaque do pai, que confundiu o escrivão na hora do registro da filha no cartório.
Alfredo é também curador de uma exposição no Museu da Imagem e do Som do Rio, a partir de segunda-feira (28), que mostrará, além de troféus, gravações em Super 8 da família e depoimentos em vídeo, originais de sinopses de novelas icônicas.
Entre eles, estão os de “Vício Capital”, de “Selva de Pedra” e o de “Irmãos Coragem” –essa romance, de 1970, foi primeiro grande sucesso da teledramaturgia da Orbe, e sua sinopse, datilografada, traz anotações à mão feitas por Janete.
Há ainda uma seleção de originais de capítulos de radionovelas e telenovelas. Um deles, de “Eu Prometo” (1983), foi todo escrito à mão enquanto Janete estava internada, com cancro. A autora morreu em 16 de novembro de 1983, quando a romance estava no ar e, em seus últimos dias, no hospital, chegou a ditar dez capítulos para o marido –o sorte do protagonista, Lucas Cantomaia (Francisco Cuoco), ela ditou no caminho entre o núcleo cirúrgico e o quarto, depois de ser submetida a mais uma operação.
Janete merece um grande resgate. Dulcinéia pelo público, passou a vida tendo se justificar à intelectualidade de esquerda, que a acusava de “alienar” a audiência com suas novelas, enquanto o Brasil enfrentava a violência da ditadura militar.
É uma injustiça sem tamanho. Embora seu estilo fosse mais romântico, melodramático mesmo, Janete foi fundamental para incorporar a veras brasileira à teledramaturgia, muitas vezes com críticas contundentes. Reportagens e mais reportagens, no entanto, a colocavam uma vez que “alienada” em oposição ao marido, “engajado”.
Em comparações do salário e do sucesso dos dois, embaladas pelo machismo, ela era aquela que “apelava para o escapismo”, enquanto ele, o intelectual que traçava “críticas profundas da sociedade”.
A própria ditadura, contundo, percebia que Janete, em meio às juras de paixão, fazia, sim, sátira social, e controlava suas novelas com uma exprobação rigorosa.
Em uma série de documentos do SNI, o Serviço Pátrio de Informações da ditadura, Janete é colocada uma vez que “problemática” para o governo, que também a chamava de esquerdista e até de comunista —a autora nunca se filiou ao Partido Comunista, inclusive porque, com o marido extremamente visado, algumas vezes tendo de se foragir, ela se via na obrigação de prometer a proteção da família.
Um dossiê do SNI avalia, por exemplo, que a romance “Irmãos Coragem” é “uma mostra, em forma de sátira, do latifundiário dos garimpos, principalmente na vexação aos garimpeiros, com cobertura ostensiva de autoridades policiais”.
Camarada da família, e também intelectual do Partido Comunista, o poeta Ferreira Gullar certa vez reconheceu o talento de Janete. Ele ajudava Dias Gomes a tentar encontrar um caminho para uma personagem da romance “Sinal de Alerta” (1978), uma operária que era leal ao marido mas que, para a história seguir, precisaria traí-lo.
Os dois não achavam a traição verossímil, até que Janete, que ouvia a conversa, não se aguentou: “Mandem o realismo à merda! Ela deve ter o caso e, além de tudo, permanecer pejada. O público vai gostar”. Gullar admitiu que ela tinha razão: “Nós somos dois míseros realistas. Janete Clair é a verdadeira artista”.