Num apartamento no Cocuruto Leblon, uma moradora que recém completou 85 anos e pouco sai de mansão, obedece a uma rotina: vincular à televisão, todas as noites, no via Viva para observar à reprise da romance “Corpo a Corpo”, de Gilberto Braga.
Seria uma rotina geral a tantas mulheres no Brasil se a espectadora em questão não fosse tradutor de uma das protagonistas da trama. Trata-se da atriz Joana Fomm, que dá vida à Lúcia Gouveia, uma decadente socialite do Jet Set internacional, que tenta fazer a filha alcançar um milionário na romance “Corpo a Corpo” para prometer o seu horizonte.
De volta à Mundo nesta segunda (2), com a reprise de “Tieta” no “Vale a Pena Ver de Novo”, e afastada da TV em seguida uma dezena de participações esparsas —seu último papel foi uma participação na série “Sob Pressão”, em 2019— Fomm não tem na vilã de “Corpo a Corpo” uma de suas personagens preferidas.
“A Lúcia Gouveia é meio boba. Ela faz umas maldades bobas, se comunica de uma forma boba, não se impõe”, diz a atriz de voz suave, vestida numa roupa branca que condiz com seus cabelos hoje e contradiz com os figurinos coloridos de suas adoráveis megeras. “A Yolanda era pior, mais má.”
“Yolanda”, para os noveleireiros menos avisados, é Yolanda Pratini, a vilã de “Dancin’ Days”, de 1978, primeira romance de Gilberto Braga no horário das 20h. Um papel que caiu nas mãos da atriz em seguida um desentendimento entre o diretor da trama, Daniel Rebento, e a atriz Norma Bengell, que viveria a megera.
O que seria somente uma substituição deu início a uma tradição. Com sua sobrançaria e olhar que dizia mais que as falas, talento só encontrado em Bette Davis, Fomm ajudou a fabricar uma escola de vilãs por meio de Yolanda. Um mundo de mulheres capazes das piores ações com as melhores intenções, da qual fazem secção personagens uma vez que Odete Roitman, vivida por Beatriz Segall, em “Vale Tudo”, também de Braga. “Ela [Yolanda] era muito má, seca, decidida. Adorava a personagem, estudei muito, me envolvi muito.”
Yolanda era a mana mais velha de Júlia Mattos, a ex-presidiária em procura de resgate, interpretada por Sônia Braga. As duas irmãs disputavam os holofotes da sociedade carioca, dentro e fora das discotecas, e o paixão de Mariza. Vivida por Glória Pires, a pequena era filha biológica de Júlia e fora criada por Yolanda. Das ironias da vida: Fomm ela própria foi Mariza. Uma vez que relata em sua biografia, “Minha História É Viver” a atriz foi criada pela tia, Alice, e seu marido, Arthur Fomm, de quem adotou o sobrenome.
Fomm recorda de uma de suas primeiras gravações da romance. “Quando eu apareci em cena, inventei que ela queimava o cigarro na boca.” Concluída a gravação, o diretor pediu para que a cena fosse refeita, achando que o lábio queimado fosse um erro. Até se inteirar que Fomm “fez de propósito”. “Eu fazia uma personagem que estava muito nervosa.”
Um momento da romance que a atriz guarda com carinho —e que, aliás, é uma das cenas mais lembradas da teledramaturgia— é o confronto final entre Júlia e Yolanda, no último capítulo. As duas irmãs discutem por culpa da instrução de Mariza, trocam acusações e se agridem. Caídas no solo, ofegantes, se abraçam, choram e se reconciliam. “Eu acho lindo aquilo. Misturou tudo. Misturou o final da romance, a despedida minha, da Sônia, a despedida do público, da personagem. Foi muito emocionante.”
A Lúcia Gouveia de “Corpo a Corpo” nasceu do sucesso da personagem de “Dancin’ Days”. Reprisada pela primeira vez, a trama de 1984 tem sido uma oportunidade para a atriz se lembrar dos amigos. “Fiquei emocionada em ver aquela gente amiga. Ver Lauro Corona, o Caique Ferreira foi o que me emocionou mais.”
Os dois atores morreram por Aids —Ferreira em 1994, e chegou a redigir um livro sobre o tema. Corona, que havia sido genro de Yolanda em “Dancin’ Days”, morreu em 20 de julho de 1989, aos 32 anos. “Acho uma malvadeza ele ter morrido. Foi uma morte injusta. Quem o acompanhou mais foi a Glória Pires”, diz. A atriz, que havia feito par romântico com o ator em “Dancin’ Days” e “Recta de Amar”, era muito amiga do galã. “Foi uma era muito triste.”
As dores não apagam as boas lembranças do período, que deixam saudade na atriz. Dez anos depois de Yolanda, interpretou a devota Perpétua, em “Tieta”, também disponível no Globoplay. Icônica, a vilã deu início a outra tradição de antagonistas, desta vez marcadas pelo humor. “A minha preferida atualmente é Perpétua. Eu me diverti fazendo.”
Outra saudade da romance é o ator Armando Bógus, morto em 1993, a quem Fomm cita mais de uma vez na entrevista. “Era um grande colega”, diz. As saudades, porém, não se resumem a Bógus. “Sinto saudades de tudo. Os amigos que eu não tenho mais, alguns morreram, outros mudaram de profissão.”
Ainda assim, mantém contato com alguns colegas. Entre eles, Glória Pires, tradutor da Maria de Fátima, de “Vale Tudo”, uma espécie de jovem Yolanda Pratini. “A gente se fala muito. Sou muito próxima dela”, diz, com um sorriso que demonstra todo o carinho pela atriz que interpretou Mariza. Minha filha, né?”
Nos anos 1990, a atriz atuou em produções do SBT, que pretendia competir com a TV Mundo na produção de novelas. Os papéis foram rareando a partir da dezena seguinte. Em 2007, estava tudo pronto para Fomm voltar a uma romance de Gilberto Braga, onde viveria a vilã Marion. Mas um cancro de seio impediu a retomada da parceria.
Curada da doença, que a obrigou a retirar os seios, foi diagnosticada com uma disautonomia, doença que afeta o sistema nervoso. “[A saúde] está muito, felizmente. Na medida do verosímil”, afirma a atriz. Na era da entrevista, ela se recuperava de uma gripe que deixou sua voz mais fraca, mas não a impediu de falar sem dificuldade por quase uma hora.
Em 2013, Fomm foi desligada da TV Mundo pela segunda vez —a primeira havia sido em 1992. A segunda destituição a abalou. “Fiquei sim, magoada. Eu fiz sucesso, não sei o que o foi. Cada emissora tem seu jeito, não sei.”
Sua curso, entretanto, não se resume à TV. Nos anos 1960, estreou no cinema. A personagem que lembra com mais carinho nessa arte é a cantora e compositora Dolores Duran, que interpretou em “A Noite do Meu Muito” (1968), escrito e dirigido por Jece Valadão. Atuou também, entre outros, em “Todas as Mulheres do Mundo” (1967), de Domingos Oliveira, e “Macunaíma” (1969), de Joaquim Pedro de Andrade.
Sua trajetória teatral reúne também momentos importantes. Formada pela escola Martins Pena, teve aulas com Jorge Kossovski, que foi aluno do russo Constantin Stanislavski, responsável por influentes teorizações da arte de atuar. Estreou, em 1958, numa montagem no Teatro Municipal do Rio que reunia amadores e profissionais, entre os quais Nicette Bruno e Paulo Goulart.
Nos anos 1960, mudou-se para São Paulo e se juntou à trupe do Teatro de Estádio. Embarcou na procura pelo modo brasílio de simbolizar e na missão de trazer as questões do país para o palco. Sua trajetória teatral foi marcada por autores uma vez que Woody Allen, Harold Pinter e Lilian Hellmann.
Quando a increpação começou a recrudescer, afetando a qualidade da produção teatral e cinematográfica, foi trabalhar uma vez que jornalista no “Última Hora”, o revolucionário jornal de Samuel Wainer. Seu primeiro entrevistado foi o ator Grande Otelo, com quem atuou em “Macunaíma”.
No final de 1979, Fomm lançou um livro de contos, “À Hora do Moca”, publicado pela Editora Cultura, da extinta livraria de mesmo nome. Fora de circulação, o livro é constituído por contos breves, de estilo sedento, que remetem ao teatro e ao jornalismo e guardam certa atmosfera rodriguiana. Um dos contos, “O Adultério”, foi adequado para o cinema, com Otávio Augusto, Suzana Faini e Laura Cardoso.
Aos 85 anos, a tradutor de Yolanda não pretende viver de lembranças. “Sinto muita falta de trabalhar, muita, muita. Sabor muito de cinema, gostaria de fazer de novo”, diz Fomm, fã de Bette Davis, Joan Crawford e Ingrid Bergman.
A atriz tem somente sua aposentadoria uma vez que natividade de renda e leva uma vida modesta. “Não consegui [formar um patrimônio]. Queria mais numerário e mais trabalho.” Quem cuida dela e de sua vida financeira é o rebento, o ator Gabriel Fomm.
Fomm afirma já não ter disposição para o teatro, oferecido o esforço físico, mas gostaria de fazer uma vilã que a surpreendesse. Confessa ser pouco simpática aos remakes. “[Por] emulação. Não quero que mexam nas minhas coisas, quero que as coisas que fiz fiquem comigo.”