João Carreiro Foi Gigante Que Criticou O Sertanejo Moderno

João Carreiro foi gigante que criticou o sertanejo moderno – 04/01/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Morto subitamente nesta quarta-feira (3), o violeiro João Carreiro faz segmento daquele rol de artistas bastante admirados por todo fã de música sertaneja, mas sobre o qual o público fora do gênero raramente ouviu falar. Por isso a comoção em torno de sua morte pode gerar notório descompasso entre fãs e quem não o conhecia. Mas não se engane, João Carreiro era um dos grandes.

Puerícia

João Sérgio Batista Corrêa Rebento nasceu em 24 de novembro de 1982 em Cuiabá, capital do Mato Grosso. Ganhou o primeiro violão do pai e a primeira viola caipira do avô. Cedo percebeu o talento nato para o instrumento, mas seu sabor era dissemelhante do avô, a quem queria aprazer.

Seu avô era fã de cantores de timbres agudos uma vez que Tonico e Tinoco, Zico e Zeca e Abel e Caim. Já Carreiro era fã de cantores que cantavam grosso, uma vez que Ronaldo Viola, João Mulato, Zé Mulato, Peão Carreiro e Praense e, sobretudo, Tião Carreiro.

Inspiração em Tião Carreiro e voz grave

Reformulador da tradição, instituidor do pagode de viola, Tião Carreiro tornou-se ao longo dos anos um dos pais da tradição caipira. No entanto, quando Tião morreu, em 1993, não houve grandes celebrações em torno do seu legado.

Nos anos 1990, imperavam as duplas de esquina agudo e estridente e a forma de Tião trovar andava meio esquecida. Foi a geração universitária que resgatou o esquina grave e empostado do violeiro, assim uma vez que seu instrumento.

A homenagem por seu rabi era tanta que, além de adotar o nome artístico em homenagem, Carreiro até rejeitava todos aqueles que cantavam agudos. Em entrevista ao jornalista André Piunti, no YouTube, contou: “sempre fui até meio bitolado na viola e nesse trovar grave. Eu até teimei com o José Rico, porque era um estilo que não me agradava”. José Rico cantava agudo.

Carreiro cantou em três duplas. Na terceira, conseguiu o sucesso ao lado de Hilton Cesar Serafim da Silva, que adotou o pseudônimo de Olheiro. A dupla seguiu o roteiro da geração universitária.

O primeiro se formou em gestão, e o segundo, em recta. Começaram em 2003 com um disco semi-amador. Em 2006, se engajaram na estética típica da idade e lançaram o CD “Acústico”.

Mas o sucesso vernáculo veio mesmo com o disco homônimo da dupla lançado em 2009, com as músicas “Bruto, Rústico e Sistemático”, trilha sonora da romance “Paraíso”, e “Xique Bacanizado”, tema da romance “Araguaia”, ambas da Orbe. Em 2010, “Xique Bacanizado – Ao Vivo” trouxe outro sucesso, “É pra Cabá”.

Precursor do sertanejo bruto

Carreiro, com seu esquina grave e apologia da tradição, ajudou a forjar o sertanejo bruto, um subgênero que, ao trovar a tradição rústico mais autêntica da música caipira, flertava com o reacionarismo no campo dos costumes. Junto da viola e da apologia da terreno, ele cantava o varão tradicional que rejeitava a modernidade, as mudanças nas relações sociais e as metamorfoses nos papéis de gênero e sexuais.

Já na idade em que foi lançada, “Bruto, Rústico e Sistemático” foi muito criticada. A melodia propunha um “corretivo” à mulher que fazia topless, criticava o jovem de brinco na ouvido e tatuagens no corpo e, para finalizar, repudiava os homossexuais.

“Sistema que fui criado/ ver dois varão adoptado pra mim era confusão/ mulher com mulher beijando/ dois homens se acariciando, meu Deus, que desengano!/ mas neste mundo moderno, não tem incorrecto e nem notório,/ encontrar ruim é preconceito/ mas não fujo à minha origem/ pra mim isso é obscenidade/ e ninguém vai mudar meu jeito.”

O sucesso levou a dupla ao programa “Viola, Minha Viola” , da tradicionalista Inezita Barroso, onde cantaram a melodia e foram muito aplaudidos em setembro de 2011. Nesta oportunidade, Carreiro disse: “nós só temos a carenagem novidade, a cabeça é do povo lá de trás mesmo!”.

Exposição politicamente incorreto

O cantor vivia um paradoxo subjetivo. Ele defendia a tradição da música caipira, mas surgiu artisticamente em outro tempo. Começou a curso no século 21, idade em que os sertanejos abraçaram até as mulheres empoderadas do feminejo. Tornou-se assim um peixe fora d’chuva, uma voz dissonante.

Talvez por sua vontade de bancar discursos fora do politicamente correto e por sua grande cultura técnica uma vez que violeiro e cantor, passou a ser muito admirado no meio sertanejo.

Ao lado dos conflitos na questão dos costumes, João vivia um dilema estético. Ele compunha na tradicional viola, mas vivia num meio cada vez mais mercantil e movido pelas redes sociais. Em “Não Toca em Minha Vitrola”, João cantou o seu drama existencial.

“Esquecendo da cultura/ tão mudando a postura/ só pra fugir do lugar/ é o sertanejo moderno/ brinco de argola e terno/ só canta mercantil/ modinha sem fundamento/ deixam no esquecimento/ toda nossa tradição/ não se fala em boiada/ é só tendência bagunçada/ e o matéria é traição.”

João acusava seus pares modernos, mas participava da mesma estrutura mercantil que criticava. Ele era empresariado pela Marcos Mioto Produções Artísticas, um dos principais negociadores do sertanejo universitário, e aparecia nos principais rodeios sertanejos.

Sintomático desta cisão estética é o disco “Lado A/Lado B”, que João Carreiro e Olheiro lançaram em 2011, seu melhor trabalho. No lado A, canções de pegada tradicionalista uma vez que “Não Toca em Minha Vitrola”, “A Tradição Não Morre Nunca” e “Caipira de Veste”, todas compostas por Carreiro. No B, canções que qualquer sertanejo romântico poderia gravar, uma vez que a belíssima “Volta pro Meu Coração”, também composta pelo dividido Carreiro.

Os paradoxos com os quais convivia talvez tenham sido pesados demais. À medida que o sucesso foi chegando, João Carreiro desenvolveu depressão e transtorno obsessivo compulsivo. Tornou-se paranoico e sofreu de síndrome de perseguição. Tornou-se também ciumento em relação à mulher e, quando bebia, o que se tornou muito frequente, todos os sintomas se incrementavam.

Separação da dupla com Olheiro

Foi no início de 2014 que a dupla se separou. Carreiro saiu da vida artística para se tratar em Sidrolândia, nos periferia de Campo Grande, onde morava. Seu parceiro encontrou outra voz muitíssimo parecida, e criou a dupla Carreiro e Olheiro. A mágoa permaneceu entre ambos.

Apesar das desgraças pessoais, pairava sob Carreiro a aura de ser o mais respeitado cantor do sertanejo bruto. Depois de seu resgate da estética de Tião Carreiro, cantores de vozes graves voltaram a ser comuns nos shows sertanejos. Duplas uma vez que Jads e Jadson, Loubet, Bruno e Barreto, Lucas Reis e Thacio, Mayck e Lyan e Carreiro e Olheiro apareceram no cenário vernáculo, alargando um filão antes muitíssimo raro.

Carreiro tratou a depressão e o TOC, parou de ingerir e retomou a curso uma vez que artista solo a partir de 2015. Mas a cisão estética continuou marcando sua trajetória. Em “Não Toco Não”, de 2018, ele continuava dividido.

“Pediram que eu cantasse um sucessinho da hora/ essas modinhas atuais que na FM rola/ respondi no pé da letra: cêis tão me mandando embora/ será que ocêis não tão vendo que meu negócio é viola/ não toco, não/ essas tendência de hoje em dia não tem zero de sertão.”

Refém do próprio personagem

Refém do personagem que forjou para si, Carreiro teve com “Bagulho É Louco Mano” seu último grande sucesso. Lançada em 2022, a melodia sintetiza os dilemas do violeiro. Batida eletrônica na introdução e refrão. Pandeiro e sanfona ao longo da música. E, apesar do reparo antropofágico típico do sertanejo universitário, a viola caipira segue presente acompanhando a voz grossa que canta a letra tradicionalista.

“Eu cheguei num rolê dissemelhante/ e a sarau durou a noite inteira/ tinha um povo fumando pen drive/ e uns louco fumando mangueira/ tinha uns copo de um urso com asa que mantém a cerveja gelada/ e um som com o volume estridente/ repetindo as mesmas palavras/ que as novinha que ‘tava de pé/ tinha que dar aquela sentada’/ eu não entendi zero/ se elas são novinha, por que tão cansada?/…/ Stanley, pen drive e narguile/ sushi, o povo evoluiu/ isso me confundiu/ será mesmo que nós tá no Brasil?”

Carreiro havia marcado uma cirurgia para correção de um prolapso da válvula mitral cardíaca para esta quarta. Era uma operação de risco controlado. O próprio cantor brincou em um dos últimos Stories de seu Instagram: “olha, gente, se eu empacotar [risos], eu não quero saber dessa roupinha cá não”, ironizou o violeiro, apontando para a roupão hospitalar que vestia.

“Não combinou muito comigo isso, não! Tem florzinha!” Em seguida, disse que ficaria semoto das redes sociais e que “papai do firmamento estava tomando conta” de tudo.

Porquê todo grande artista, Carreiro tinha seus dramas, cisões e paradoxos pessoais. A morte dói mais quando é repentina. Ele era um gigante, e se ainda há gente que não o conhecia, talvez isso se deva ao próprio músico que, no termo, fez valer sua sátira ao comercialismo músico. Viva sua arte.

Folha

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