Um iPhone colado em um batente de madeira reproduz um GIF com quatro imagens: dois ângulos de uma carcaça de boi em estado avançado de desagregação alternam com fotos de uma sacola plástica azul despedaçada no meio do mato.
A obra “Arte para Ninguém”, de 2019, é um recorte da série homônima de registros do cotidiano sertanejo feitos pelo artista Juraci Dórea, que ganha retrospectiva na galeria Martins & Montero por ocasião dos seus 80 anos.
Pioneiro ao mudar o olhar do rodeio das artes para a cidade de Feira de Santana em meados da dez de 1980, Dórea trabalhou com a iconografia desta região marcada pela carestia e a seca. Com o Projeto Terreno, de 1982, ele realizou grandes esculturas em madeira e epiderme curtido.
As obras eram alocadas em campo simples, tornando-se marcos da paisagem de pequenas cidades sertanejas uma vez que Monte Santo e Uauá.
“Minhas esculturas estão espalhadas pelo Sertão, são efêmeras, e questionam essa pretensão da arte de ser eterna. A gente vê a ação do tempo em tudo”, afirma Dórea em entrevista por telefone.
A mostra “Breveterno: Notas para uma Lírica Político-Mística da Estiagem” traz registros históricos do Projeto Terreno, que recebeu destaque nas bienais de São Paulo, em 1987, e Veneza, em 1989, alçando o nome de seu pai a uma espécie de representante do concretismo no Nordeste.
O movimento foi importante para a formação literária de Dórea que, na dez de 1970, publicou a revista Hera junto a outros escritores e artistas visuais baianos, uma vez que Antonio Brasílio.
Mas o grupo estava geograficamente distante dos concretistas e, naturalmente, as discussões ganharam cor lugar. “Dórea e seu grupo em Feira de Santana não queriam assinar nenhum manifesto, mas produzir uma poética novidade para mostrar o Sertão, colocando foco no olhar de quem ali vivia”, explica o curador Deyson Gilbert.
Arquiteto de formação, poeta por vocação e videomaker analógico, Dórea experimentou diversos formatos ao longo da curso e a mostra contempla sua produção multifacetada.
Registrou o cotidiano de Feira de Santana por meio do gravura e da pintura, representando cenas clássicas da literatura de cordel e também os eventos populares da cidade, uma vez que uma micareta carnavalesca, que pode ser vista na tela “Trio Elétrico”, de 1990, em que o artista utiliza uma técnica de carvão.
Ao longo da curso, Dórea utilizou o mineral em vários trabalhos, valorizando a material prima que encontrava com facilidade na região – já que a tinta a óleo de qualidade, na idade, não era alcançável uma vez que hoje. “Eu quis radicalizar com o carvão, transcrever a rusticidade da ilustração de cordel. Me afastei da ilusão de ser tecnológico na nossa simplicidade”, diz o feirense.
Em “Paisagem Nordestina”, de 2007, o artista desenha com carvão sobre papelão uma espécie de croqui da estrutura escultórica propriedade do Projeto Terreno. A mostra é marcada pela série, mas não traz nenhuma estátua original.
Feitas para habitar o espaço extrínseco devido a suas grandes proporções, o projeto mais espargido de Dórea ganha uma reprodução tridimensional em miniatura. Ampliações fotográficas de meados do século pretérito também mostram uma vez que essa estrutura frágil era montada.
Dórea oferece à paisagem uma representação daquilo que contempla. Um trabalho de troca com a natureza, uma vez que o próprio artista pontua no documentário “O Imaginário de Juraci Dórea no Sertão Veredas”, dirigido pelo poeta Tuna Espinheira, em exibição na galeria. O artista relembra de um diálogo trocado com um sertanejo, que definiu o Projeto Terreno em poucas palavras: “Você vai deixar o trabalho aí [ao ar livre] para que o tempo construa o trabalho”.
“O lugar escolhido por Dórea é sempre atravessado por ecos históricos”, pontua o curador. Ele se refere às expedições que o artista realizou na cidade de Canudos, cenário da guerra imortalizada “Os Sertões”, clássico do jornalista Euclides da Cunha. “A exposição quer discutir sobre a modernidade uma vez que um tanto geral da quesito humana, porque o sertanejo está imbuído de uma lucidez moderna”, complementa Gilbert.
Segundo o curador, o método de Dórea é fundamentado em um “gesto construtivo que se refere a um lugar não só físico, mas social, abordando o território por camadas históricas, geográficas e políticas”. Neste processo de recriar paisagens soterradas pelo tempo e pelo excesso de tecnologia, a mostra realiza um resgate de nomes importantes para o repertório de Dórea, uma vez que a rabi artesã Crispina dos Santos, presente com uma pequena estátua de barro em formato bovino.
Em uma espécie de intercepção expográfico, o curador posicionou obras de Dórea e de outros artistas para produzir a imagem definida uma vez que “uma constelação” e realçar temas trabalhados no imaginário do protagonista. A xilogravura e a arte da sentimento artesanal são notáveis. Trabalhos do gravador Jurivaldo Alves da Silva e cordéis de Minelvino Francisco da Silva atestam a influência da literatura produzida pelos cancioneiros regionais na obra de Dórea ao longo dos anos.
“O Projeto Terreno é quase um sistema. Foi uma expedição da estátua, desdobrada na confecção de pinturas e cordéis. Esse processo revelou também outros mestres”, acredita o curador. É o caso de Minelvino, que dá a letra no livreto “A perceptibilidade sertaneja no estado da Bahia”, uma edição fac-similar reeditada do cordel esgotado durante a Bienal de São Paulo de 1987: “Juraci tirou o retrato/pra permanecer documentado, seu trabalho em Monte Santo/ Ainda é hoje falado, até eu fiz leste livro/Pra ser melhor divulgado.”