Em entrevista para o documentário “As Divas Negras no Cinema Preto Brasílico”, realizado por Vik Birkbeck e Ras Adauto em 1989, Léa Garcia, uma das pioneiras no teatro, no cinema e na televisão, conta que teve uma crise de pranto durante a estreia do longa “Orfeu Preto”, de 1959, de Marcel Camus, seu primeiro grande papel no cinema.
Ela se preocupava com o modo uma vez que a audiência gargalhava das maluquices de sua personagem, Serafina. A atriz, que havia feito testes para interpretar Mira, a prometida traída que, segundo ela, combinaria mais com sua versão trágica, acabou ficando com um dos alívios cômicos do filme.
Mas a partir dessa personagem, que lhe rendeu a indicação ao prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes, é verosímil vislumbrar a força do trabalho de atuação de Léa e uma das características centrais de sua curso —a capacidade de erigir complicação, subjetividade e incoerência diante de estereótipos, driblando as armadilhas racistas que povoam a história do audiovisual brasílio e entregando, pela ginga, humanidade.
O longa é o ato de exórdio da “Mostra Léa Garcia: 90 Anos”, que começa neste sábado no Meio Cultural Banco do Brasil, em São Paulo. A retrospectiva, que conta com curadoria dos cineastas e pesquisadores Ewerton Belico e Leonardo Amaral, apresenta 15 longas protagonizados pela atriz até o dia 23 de junho, destacando a versatilidade desta que, ao lado de Ruth Souza, Zezé Motta, Zenaide Zen, entre outras, construiu novas possibilidades para o trabalho e a representação de mulheres negras nas artes.
Carioca, Léa Lucas Garcia de Aguiar nasceu em 1933 e morreu em 2023, aos 90 anos, logo antes de receber um prêmio durante a 51ª edição do Festival de Cinema de Gramado.
Se Ruth de Souza diz ter realizado uma “curso correta”, com Léa não poderia ter sido dissemelhante. A crise de pranto durante a estreia de “Orfeu Preto” inclusive pode simbolizar a influência da geração atenciosa que recebeu de sua mãe, uma modista requisitadíssima, e de sua avó, empregada doméstica numa família rica, enquanto crescia entre as zonas sul e setentrião do Rio.
“Você não vai ser uma negrinha de pé no solo”, elas lhe diziam, uma vez que conta Julio Claudio da Silva no livro “Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita: A Trajetória e o Protagonismo de Léa Garcia”.
A imagem de negros escravizados descalços ainda estava na memória daquelas que vivenciaram os primeiros anos de supressão no país, motivo pela qual elas desejavam um horizonte dissemelhante para a filha e a neta.
Mesmo enquanto interpretava Rosa em “Escrava Isaura”, uma das vilãs de grande sucesso da TV Mundo, Léa trazia um chinelo para usar entre as gravações. A recusa à teoria dos pés descalços também repercute, de certa forma, no seu engajamento em prol da valorização da negritude.
Egressa do TEN, o Teatro Experimental do Preto, no qual estreou na dez de 1950, foi mãe de três filhos e funcionária pública. Todavia, foi no palco e nas telas que ela deixou sua maior tributo.
É Léa quem aponta para o Quilombo dos Palmares quando um escravizado fugitivo a encontra em “A Divindade Negra”, filme de 1978 dirigido por Ola Balogun. É ela também quem confronta o contínuo processo de apagamento de seu irmão, interpretado por Zózimo Bulbul, em “Compasso de Espera”, de 1973, de Antunes Rebento.
Já contracenando com Ruth de Souza, Maria Ceiça e Taís Araújo, ela estabelece as linhagens intergeracionais de uma família negra em “Filhas do Vento”, de 2005, de Joel Zito Araújo. Idosa, ela ainda protagoniza um dos importantes momentos de efervescência do cinema preto brasílio com o curta “O Dia de Jerusa”, de 2014, e o longa “Um Dia com Jerusa”, de 2020, ambos realizados pela cineasta Viviane Ferreira.
Pelo seu trabalho, muitas vezes conseguiu evadir da jerarquia entre atriz e diretor para imprimir autoria em seus papéis. Assim, criou um rol de personagens que ainda hoje reverberam pela ousadia, atualidade e talento.
Não à toa, já estava com alguns trabalhos engatilhados no ano de sua morte. E, antes e em seguida essa data, continuou sendo laureada com homenagens pela sua tributo.
Em setembro do ano pretérito, foi escolhida para ser nome da sala no Novo Teatro Metrô Tatuapé, em São Paulo. No início deste mês, inspirou a terceira edição do Cineclube Mocambo, de Belo Horizonte, que construiu uma curadoria de filmes brasileiros e internacionais a partir das ideias suscitadas por suas interpretações.
A retrospectiva do CCBB ainda passa pelo Rio de Janeiro em outubro e por Brasília em novembro. A mostra ainda exibe os clássicos “Ganga Zumba” (1963), de Cacá Diegues, e “Ladrões de Cinema” (1977), de Fernando Coni Campos, “Feminino Plural” (1976), de Vera Figueiredo, e “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida” (2019), de Jeferson De, entre outros que destacam a versatilidade da grande atriz.