Morreu, neste sábado (24), o cineasta Marcel Ophuls, que desmistificou a teoria de que a França resistiu à ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial com o documentário “A Tristeza e a Piedade”, de 1969.
Também vencedor do Oscar, em 1989, por “Hotel Terminus – A Vida e o Tempo de Klaus Barbie”, o diretor veio ao Brasil em 1997 para uma retrospectiva de sua obra no festival É Tudo Verdade. A invitação de Amir Labaki, diretor do evento, Ophuls escreveu um texto apresentando a si mesmo para o público brasiliano, publicado no caderno Mais!, da Folha, um dia antes de seu desembarque.
Nela, afirma que se tornou, a contragosto, “um tipo de profissional da miséria do mundo” com “A Tristeza e a Piedade”, relembrou a obra do seu pai, o genial Max Ophuls, as desventuras na Bolívia durante as filmagens de “Hotel Terminus”, além de sua passagem anterior pelo Brasil, que terminou com um acidente e uma misteriosa amnésia.
Leia o texto na íntegra aquém.
Missiva aos espectadores brasileiros
Há pouco tempo, li em qualquer lugar que o seu novo presidente [Fernando Henrique Cardoso] teria dito, a propósito do seu grande e maravilhoso país: “O Brasil não é um país pobre, é um país injusto”. Isso me impressionou, e por duas razões. Há 30 anos, e muito a contragosto, tenho-me confrontado, no tirocínio das minhas atividades profissionais, com a injustiça da nossa história contemporânea.
Contra a minha vontade, tornei-me, a partir da realização do filme “A Tristeza e a Piedade”, um tipo de profissional da miséria do mundo.
Zero de muito alentador, há que se revelar, sobretudo à medida que os anos passam. Eis-me agora acuado no papel, um tanto ridículo, de dom Quixote encanecido, encarapitado num magro rocim, supostamente usando da câmera porquê de uma lança de cavaleiro obsoleto contra os temíveis moinhos de vento da barbárie, do genocídio e da injustiça do século 20. Definitivamente, não há por que se pavonear.
E devo ainda revelar que tal “especialidade”, dolorosa em si mesma, não melhora em muito o estado da minha conta bancária. Meu pai, Max Ophuls, cineasta de gênio, conheceu a glória a título póstumo, mas ainda hoje, graças às televisões do mundo inteiro, à TV a cabo, aos videocassetes e aos satélites, seus direitos autorais ainda ajudam a “encher a panela” nos anos de vacas magras. Mas o que será da minha família quando o vovô tombar no domínio público e quando eu mesmo tiver sumido, se já agora não se encontram cópias dos meus filmes nem sequer para a organização de retrospectivas?
Questão melancólica a que os quixotescos a meio soldo não podem fugir. George Bernard Shaw, oriente espírito magnífico, lúcido e excêntrico, pensava que, nas artes de espetáculo, todos os que trabaIham para a posteridade são “pompous arses” [asnos pomposos], pretensiosos mesquinhos condenados à trivialidade… Formidável!
Estou profundamente de combinação, mas depois de uma vida inteira (porquê a sua mesma) debruçado sobre as taras, os ridículos e os vícios do tempo, quando soa a hora tardia das retrospectivas e das comemorações, tem-se o recta de formular algumas questões. Não se trata necessariamente de orgulho (sabe-se lá!), mas, antes, de uma tomada de consciência da própria mortalidade.
Muito já se afirmou que “A Tristeza e a Piedade”, o filme sobre a ocupação nazista da França, que me tornou célebre em diversos países, confinando-me, simultaneamente, a um gênero de cinema que não me agrada em privativo —teria preposto rodar “Cantando na Chuva” e os filmes de Fred Astaire e de Woody Allen— e que serviu para mudar a autopercepção histórica de toda uma região.
Não tenho tanta certeza, mas pode até ser o caso! Se sim, creio que oriente terá sido, acidentalmente, um dos raros exemplos dentro da história do cinema a ter cumprido tarefa tão gigantesca. Mas o improvável não acontece todos os dias, e estou convicto de que o impacto da mídia —e do cinema em privativo— sobre a vida das pessoas é evanescente, fugitivo, mínimo.
Feitas as contas, ainda muito! Não fosse assim e o dr. Goebbels teria tido sucesso ainda maior, ao passo que os espíritos medíocres e demagógicos dos publicitários e dos magnatas da mídia, que, atualmente, controlam nosso consumo audiovisual, celebrariam um verdadeiro triunfo no interno das nossas cabeças.
“Injustiça e pobreza!” A primeira e única vez em que pude visitar o Brasil ocorreu quando retornava de uma filmagem na Bolívia —uma fita sobre a vida e a curso do ignóbil Klaus Barbie, de título “Hotel Terminus”. Essa filmagem, toda ela em La Sossego, Cochabamba e Santa Cruz, em meio aos chefões das drogas e aos antigos protetores e amigos do “magarefe de Lyon” fora razoavelmente penosa e, sem incerteza, muito perigosa.
Depois a filmagem, quis voltar a Paris fazendo graduação no Rio de Janeiro, decerto influenciado por minhas recordações de “Voando para o Rio” e de “Interlúdio”, do rabi Hitchcock, mas também pela leitura da autobiografia de Stefan Zweig e pela notícia de seu encontro com Orson Welles, poucos dias antes do suicídio. Queria também, cumpre revelar, tomar um banho de mar na famosa praia de Copacabana e, se provável, encontrar algumas daquelas moças esplêndidas e seminuas que sempre se veem nas reportagens sobre o Carnaval do Rio.
Mandei a equipe de filmagem de volta a Novidade York e sobrevoei sozinho a Amazônia, num avião das Linhas Aéreas Bolivianas, pertencentes ao general Hugo Banzer, colega e notório protetor de Klaus Barbie e de muitos outros criminosos de guerra. Numa graduação em Santa Cruz e em circunstâncias muito misteriosas, roubaram-me um guardanapo contendo todos os endereços dos meus informantes dissidentes na Bolívia.
Instalado no Hotel Meridien, no Rio de Janeiro, passei a maior segmento do tempo tentando alertar as autoridades consulares e diplomáticas da França e dos Estados Unidos, meus dois países de adoção. Em vão! Não recuperei o guardanapo. Felizmente, o sr. Banzer, algumas semanas mais tarde, perdeu as eleições para um candidato mais democrático e menos suspeito de simpatias nazis. Posso, portanto, ter esperanças de que meus informantes em La Sossego não tenham sido molestados.
Fosse porquê fosse, trajando um roupão branco e, a parecer da recepção do hotel, despido de carteira, relógio ou joias, acabei por me aventurar sozinho na praia. Era baixa temporada, e eu era o único a marchar por aqueles quilômetros de areia, exceção feita a um vendedor de amendoins descalço que passava por mim, de quando em quando. As ondas estavam muito fortes, e eu mergulhava nelas com imenso delícia. É tudo de que me lembro! Amnésia totalidade!
Não sei quanto tempo depois dei por mim recostado a uma placa de trânsito ao lado da avenida. Era dia de maratona no Rio, e os corredores, acompanhados pelos carros da TV, desfilavam à minha frente. Um garoto brasiliano apontava o dedo para o meu rosto ensanguentado: “Doutor! Doutor!”, dizia ele com voz suave, mas persistente. Acabei por seguir o parecer do gentil pequenino; chamaram o médico do hotel, uma bela moça judia chamada Monica Wolff, que, depois de dar a atenção devida ao meu olho roxo, aconselhou uma transferência para um pronto-socorro, a termo de passar por uma tomografia.
Para manifestar a verdade, eu não estava muito predisposto a seguir o parecer. Havia poucos dias que o seu último presidente, recentemente eleito, sucumbira a uma série de dez intervenções cirúrgicas, tudo por desculpa de uma comum apendicite. Decidi-me, portanto, a invitar a bela doutora para um almoço e a retornar à França tão logo fosse provável. O resultado é que agora tenho um buraco na cabeça e sofro perdas de memória. Terá sido uma vingança dos amigos de Klaus Barbie no Brasil, aqueles “boys from Brazil” que, por tanto tempo, protegeram o dr. Mengele, de sinistra memória? Quem sabe?
A maravilhosa enunciação do presidente [Fernando Henrique] Cardoso, corajosa e autocrítica, tranquiliza-me bastante quanto à situação presente das instituições políticas e hospitalares no Brasil. Desde portanto, a democracia e os direitos humanos parecem ter feito progressos significativos em seu país. Em tais condições, será que os meus filmes, longos, e sobrecarregados com as legendas em português, terão um pouco a “ensinar” ao público brasiliano? Seja porquê for, sou mais que cético quanto às supostas virtudes pedagógicas do meu cinema. Para mim, mui francamente, trata-se, no melhor dos casos, de filmes “de sucesso”.
Se é que há “virtudes” neles, estas não serão outras que as do cinema em universal, arte popular do nosso século —e, neste caso, creio que são consideráveis. Porquê qualquer profissional do espetáculo, tento sobretudo seduzir, deleitar, distrair.
P.S.: Meus filmes, compostos quase que exclusivamente de entrevistas filmadas e de documentos de registro, são bastante longos, complexos e inteiramente estruturados sobre as falas das inúmeras testemunhas. Creio que poderiamos chamá-los de “testemunhos múltiplos”. A despeito do pedestal considerável das legendas em português, desaconselho a espectadores sem grandes conhecimentos de francesismo e inglês o sofrimento desnecessário de quatro horas de “talking heads”. Não podia deixar de preveni-los! Obrigado e até logo!
Cordialmente,
Marcel Ophuls