Será provável imaginar o grande Zé Celso envergonhado diante de alguém? Acredite, aconteceu. E o nome da pessoa que o fez rubejar é Lina Bo Bardi.
Era 1962 quando o diretor teatral foi encontrar Martim Gonçalves para negociar os direitos autorais da peça “Um Bonde Chamado Libido”, de Tennessee Williams. Marcaram a reunião em um boteco carioca, onde Martim tomava um drinque com a amiga Lina.
“Eu era muito tímido, usava terno, gravata, colete e o balancinho da Faculdade de Recta. Era jovem no sentido clássico, mais cabaço. Nem sentei, eu era muito apertado. Ela ficou me observando. Era muito formosa e dengosa. Me olhava com um olhar irônico, de cima para reles, via que eu não sabia das coisas e eu fiquei até constrangido, fiquei vermelho”, disse o dramaturgo em 2019, durante uma entrevista a Francesco Perrotta-Bosch, biógrafo de Lina e curador da mostra “Lina e Zé: Transgressões”, ao lado do arquiteto Renato Anelli, que abre neste sábado na Mansão de Vidro e no Teatro Oficina.
Em 1969, Glauber Rocha indicou a arquiteta para fazer o cenário de “Na Selva das Cidades”, de Bertolt Brecht. A peça que retrata a devassidão do varão e a vexação dos centros urbanos era construída a partir de inúmeras disputas verbais que Zé estruturou em rounds, fazendo uma metáfora com a luta de boxe potencializada por Lina ao transformar o palco num ringue.
Originalmente a narrativa se desenvolve em Chicago, mas quando encenada em São Paulo ganhou uma novidade estrato sátira por coincidir com as demolições e desapropriações promovidas pelo Estado na região do Bixiga.
“É nesse momento que, em frente ao Teatro Oficina, estava sendo construído o viaduto Jaceguai e Lina propõe usar o próprio entulho da obra para a construção do ringue que era totalmente destruído a cada apresentação e, no dia seguinte, montado novamente”, explica Perrotta-Bosch.
A matéria-prima da arquitetura cênica é, portanto, a própria cidade que entrava em conflito e catarse diariamente. Na sala de jantar do parelha Bardi, é provável conferir dez desenhos que a arquiteta criou para os figurinos e cenas.
No mesmo envolvente, na janela, vale ler um trecho do primeiro “Manifesto do Teatro da Crueldade”, escrito por Antonin Artaud em 1932: “Suprimimos o palco e a sala, substituídos por uma espécie de lugar único, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo, e que se tornará o próprio teatro da ação.”
Tanto a peça “Gracias Señor”, de 1972, quanto o projeto do Teatro Oficina, desenvolvido ao longo dos anos 1980, reafirmam a resguardo de Lina e Zé pela teoria de rescisão das fronteiras entre palco e plateia. A origem desse “statement” está na leitura de Artaud, Brecht e Jerzy Grotowski, mas também pode estar diretamente ligada ao próprio movimento neoconcreto brasílico que também sugere a participação do público para ativar as obras de arte.
“Zé Celso punha em prática o que depois foi chamado de ‘teatro performativo’ e o ‘environmental theatre’. A proposta era estabelecer outro tipo de presença. O testemunha deveria estar mais consciente e participar ativamente. Negava-se uma postura passiva diante da obra”, afirma a dramaturga Camila Damasceno.
“E no Brasil, esse movimento ganha uma relação potente com o comunitário. Por isso, talvez, Lina estivesse sempre nos lembrando que estamos dentro da cidade. O teatro passou a ser um evento cênico, um espaço de encontro”
Lina negava a vocábulo “cenografia” por estar muito ligada ao formato do teatro convencional aristocrático italiano do século 18 e 19 e sugerir uma experiência bidimensional. Ela queria romper com esta estrutura e produzir a não só a arquitetura do palco porquê um todo, mas também extrapolá-lo.
Nesse sentido, defendia o formato de palco-arena –porquê o teatro do Sesc Pompeia e o Teatro Oficina– sugerindo uma multiplicidade de olhares e perspectivas.
Em “Gracias Señor”, Lina e Zé elevam estes rompimentos à décima potência. A peça começa com os atores vindo da rua e ganha força com o envolvimento da plateia. A arquitetura cênica remetia a um campo de concentração e, de convénio com as anotações da arquiteta, se construía a partir de suas memórias da guerra.
Na televisão da sala, vemos uma reunião da Condephaat sobre o tombamento do Teatro Oficina em 1982 com a presença de Lina e Zé –um dos raros registros dos dois juntos em ação.
Foi no processo de tombamento que a invenção da topografia originário do terreno inspirou Zé a elaborar o palco em rampa. Desenvolveram, portanto, a declividade e os praticáveis sob o título “Oficina Teatro-Estrada”, enfatizando a perenidade do espaço urbano no palco-rua.
No mesmo envolvente, são apresentados também sete desenhos de diferentes versões do Teatro Oficina desenvolvidos desde 1980 e esta é a primeira vez que o original do projeto mais leal ao que conhecemos hoje, feito em 1984 e assinado com o Edson Elito, volta para a Mansão de Vidro.
Para a livraria da mansão e frontaria do Teatro Oficina, os curadores desenvolveram um videomapping, assinado por Marcus Vinicius Arruda Camargo, com mais de 300 imagens de todas as obras. Entre os períodos de exílio, Lina e Zé assinaram a direção de arte de “Prata Palomares”.
A mostra “Lina e Zé” revela uma foto feita durante a filmagem, um dos poucos registros dos criativos juntos. Um encontro que começou apertado, se revelou explosivo e marcante para a história desse país.