Até meados da dezena de 1980, balada era lugar para permanecer bêbado e pegar alguém, e DJ era o faceta que mandava para as caixas de som os hits da rádio. A visão limitada da diversão noturna mudaria bastante nas décadas seguintes —os disc jóqueis passariam a ser considerados autores, tocando músicas novas para um público que não queria flertar nem tomar até desabar, mas só curtir o som e fazer secção de uma turma.
A trilha sonora desta mudança radical de comportamento foi a música eletrônica, e sua cidade irradiadora, São Paulo. Um livro que será lançado nesta sexta (26), “Bate Estaca: Porquê DJs, Drag Queens e Clubbers Salvaram a Noite de São Paulo”, tomada esta revolução ao retratar as casas noturnas e os personagens responsáveis por marcarem a noite e a cultura jovem paulistana, no período que vai da redemocratização até o início do século 21.
O responsável, o DJ e jornalista Camilo Rocha, ele próprio um personagem da cena eletrônica, dedica cada capítulo do livro a uma lar noturna, fazendo a conexão entre o clube e o tipo de som que ali tocava. Relembramos, por exemplo, o Sra. Krawtiz e a chegada do techno, em 1992, contexto que impulsionou as drag queens e a cultura do host e da hostess, pessoas que recebiam os convidados na porta.
Há seções para o histórico Love Club, a D-edge —lar ativa e bem-sucedida ainda hoje—, o extinto festival Skol Beats e também as raves de trance, que reuniam dezenas de milhares de pessoas em fazendas nos periferia de São Paulo. O texto tem tom de reportagem, com informações claras apresentadas em ordem cronológica, e subseções que explicam em detalhes cada uma das vertentes da eletrônica.
Da leitura, se depreende que a capital paulista —hoje uma das principais cidades do mundo para a noite eletrônica—, foi um lugar propício para a propagação da cultura da pista de dança. “A sociabilidade se dá muito nesses espaços, ao contrário do Rio de Janeiro, onde você tem a praia. São Paulo, por ser essa cidade ‘carrocêntrica’ e sem grandes espaços públicos, o clube, a discoteca e a danceteria acabaram tendo o papel da sociabilidade”, diz Rocha, por telefone.
O responsável também destaca a originalidade dos DJs de São Paulo, que se apropriavam de ritmos estrangeiros e davam a eles uma cor brasileira para ocupar o público. Esta antropofagia resultou, por exemplo, na filete “Sambassim”, uma formação de Fernanda Porto depois remixada com uma batida de drum’n’bass pelo DJ Patife. A música estourou na viradela para o século 21, quando se tornou sinônimo de sofisticação ao juntar MPB e o estilo eletrônico surgido na Inglaterra.
Rocha dedica um capítulo do livro às casas noturnas da zona leste, região sempre fervilhante mas frequentemente esquecida na história clubber paulistana. Há o saboroso incidente de quando, por possibilidade, Marquinhos correu para lar para buscar discos e tocar pela primeira vez na matinê da Showbusiness, cobrindo um DJ que faltou.
Mais tarde, Marquinhos, o DJ Marky, se tornaria uma das caras da eletrônica brasileira no exterior, e a Showbusiness viraria a estrondosa Sound Factory, que atraía caravanas de várias regiões de São Paulo para a Penha, nos finais de semana, e lançou drag queens uma vez que Elloanigena Onassis e Lyza Bombom.
No início, a Sound Factory tentava emular os clubes de regiões centrais, diz o responsável, mas com o tempo a lar encontrou a sua identidade. “Se o Hell’s [balada que acontecia nos Jardins] era mais techno, a Sound Factory já começou a ir para o jungle, drum’n’bass.”
No mais, acrescenta Rocha, casas situadas fora das regiões centrais precisavam atender a um público muito grande e diverso, de modo que o DJ Patife alternava drum’n’bass com É o Tchan numa balada de Cidade Dutra, na zona sul, na qual discotecava. Nos Jardins e em Santa Cecília, os clubes eram menores e podiam focar numa única vertente de som eletrônico, sem misturar com outros estilos musicais.
“Bate Estaca” se insere numa ainda pequena lista de livros que registra o desenvolvimento da cena noturna da capital paulista e da qual fazem secção “Babado Poderoso”, de Erika Palomino, e “Todo DJ Já Sambou”, de Claudia Assef, além de algumas poucas teses acadêmicas. Se sobra material de leitura sobre o rock e a MPB, o mesmo não se pode expressar da música eletrônica.
Rocha conta que não deixar a memória clubber morrer foi o grande incentivo para a sua pesquisa, que enfim trata não só de baladas, mas da própria história de São Paulo. O texto traz entrevistas com DJs, donos de clubes, drag queens e produtores de sarau, além de trechos em primeira pessoa, nos quais o responsável conta as suas experiências de quem viveu o objeto de estudo antes de teorizar sobre ele.
“Bate Estaca” vai se desdobrar em um documentário, sendo desenvolvido agora pela “Grifa Filmes”, a mesma produtora da série “Mães do Funk”.
Talvez um dos principais legados da noite eletrônica retratada no livro seja o guarida da variedade sexual, esse concepção tão em voga hoje. Rocha lembra que “quem não viveu não tem teoria” do quão preconceituosos e machistas eram os costumes da era.
“Um varão não podia dar a mão para outro em varão em qualquer lugar que ia tomar porrada”, diz, lembrando que as pistas de dança dos anos 1980 e 1990 foram pioneiras em quebrar levante paradigma.
“A cena de festas criava espaços onde tudo muito fazer isso, onde isso não era um problema. A questão da variedade era valorizada. Portanto isso foi proveitoso para a cidade uma vez que um todo.”