O que nos une uma vez que latino-americanos? Histórias de violência? O realismo fantástico? Os artistas e chefs do livro “Arte à mesa: Diálogos entre arte e comida na América Latina” provavelmente responderiam que a pergunta correta é: Mas o que de veste nos separa?
As fronteiras que dividem nações estão cada vez mais dissolvidas, são uma invenção, e as culturas da região se conectam por meio da ancestralidade, dos biomas e dos hábitos alimentares em generalidade. E é a vontade compreender e valorizar as tradições locais que costura o trabalho dos 14 criativos selecionados para a publicação e apresentados por textos de Julia Cavazzini e Luiza Fecarotta.
A procura pela própria origem é, muitas vezes, o ponto de partida. A artista La Chola Poblete fala sobre a cultura andina entre discussões em torno da batata —existem mais de 4.000 tipos por cá— e reflexões sobre a fluidez da chuva.
O tubérculo que pode grelar em qualquer lugar representa, para ela, a origem do ser humano em regular mutação e trânsito, enquanto o líquido, vital para o corpo e sazonalidade na natureza, vira material e metáfora no libido de romper estigmas coloniais que discriminam raça e gênero.
Preocupado com a saúde, o colombiano Carlos Afonso começou a adotar práticas gastronômicas conectados aos costumes dos povos de seu país. Ingredientes típicos rapidamente migraram da cozinha para o ateliê. Protagonizam ações coletivas e pinturas que trazem à tona mitologias e narrativas dos povos pré-colombianos e destacam as propriedades medicinais e funções místicas e religiosas dos mantimentos.
Em “Escrito em Gelo: Memórias Comestíveis do Bairro de San Juan”, Martina Miño Perez se desfia a gerar sabores sociais, espirituais, políticos e afetivos a partir de um experimento com os moradores do bairro San Juan, em Quito.
A teoria foi fazer um treino coletivo para resgatar diferentes narrativas daquele território e traduzi-las em picolés. Amora, graviola, orégano, maracujá e queijo, entre outros, resultaram em sobremesas com nomes sugestivos —”Do Ponto de Vista de uma Mulher Negra” ou “Resiliência e Resistência”. Nas palavras da artista, alguns “são picantes e nos introduzem ao mundo místico e paranormal do bairro, outros são doces e agradáveis, reflexões sobre a amizade entre vizinhos”.
Mas falar de origem implica, também, refletir sobre a colonização do paladar, do meio envolvente e da própria língua uma vez que formas violentas de dominação. Assim, críticas sociais ligadas à sustento também vêm à tona.
Se de um lado, Asunción Molinos Gordo revela números alarmantes ligados à lazeira, fenômeno que é, lembra a artista, uma ficção já que o planeta produz o suficiente para nutrir sua população inteira pelo menos uma vez e meia.
Do outro, temos Lucia Hierro se apropriando da linguagem publicitária para criticar o capitalismo gustativo a partir de uma perspectiva diaspórica, destacando principalmente os hábitos dominicanos que vivem nos Estados Unidos.
O açúcar é apresentado uma vez que um resultado multíplice e contraditório. Na obra “Posso Pegar uma Xícara de Açúcar?”, Hierro o destaca uma vez que mediador de relações de afeto e solidariedade entre membros de uma vizinhança, uma extensão da moradia e onde tradições e vínculos de cumplicidade territorial se fortalecem.
Paralelamente, Tiago Sant’Ana denuncia o comida uma vez que catalizador de disputa territorial e um dos principais motores de nosso pretérito escravocrata. Explora o potencial escultórico e metafórico do açúcar para gerar imagens que narram os trânsitos e a resiliência da população negra. Usa o substância, ainda, para expor o apagamento dos corpos retintos e a construção de pensamento eurocêntrico.
Para Paulo Nazareth, a comida, a linguagem e a jornada são símbolos e testemunhos de ancestralidade. Em “CA – Produtos de Genocídio”, ele cria cápsulas de mercadorias que estampam nomes apropriados de culturas indígenas e afro-americanas em suas embalagens, evidenciando a brutalidade da colonização ainda presente no cotidiano.
Já em “Mercado de Bananas/Mercado de Arte” e “The Red Inside”, ele reivindica o uso pejorativo das palavras que representam nobres mantimentos. Enquanto a sentença “República das Bananas” é usada para definir um país politicamente instável e submisso, “Melancia” pode ser uma menção depreciativa aos comunistas. Mas o artista lembra que a melancia é símbolo de resistência já que foi trazida do continente africano e suas sementes foram usadas por escravizados para semear e marcar rotas de fuga.
Esta anseio em resgatar a memória dos mantimentos e costumes originários está presente, também, na cozinha mais renomada do continente. Alex Atala foi um dos primeiros chefs que compreendeu a nossa riqueza gastronômica e acabou inspirando outros a seguir os caminhos dos povos que estão por cá desde sempre e conhecem nossa fauna e flora uma vez que ninguém.
O peruviano Virgílio Martinez, número um do mundo, e a colombiana Leonor Espinosa também apostaram na ancestralidade e inconstância de seus países que são litorâneos, andinos e, ao memo tempo, amazônicos. Os antropólogos João Paulo Lima Barreto, da etnia Tukano, e Clarinda Maria Ramos, da etnia Sateré-Mawé, são um caso à secção. Eles comandam o Biatüwi, restaurante de quem objetivo é transmitir a cultura indígena em sabores criados por quem tem lugar de fala —todos os processos e elementos que encantam os grandes chefs fazem secção de seus cotidianos.
Em generalidade, todos têm a missão de provar que a culinária da América Latina é única, colorida e enxurrada de texturas, tem tempero e psique. É múltipla e só pode ocorrer se estiver conectada com os respectivos patrimônios biológicos e culturais, alicerçados em saberes e hábitos atávicos. Não à toa, quase todos chefs do livro criaram institutos de pesquisa para registar, preservar e vulgarizar ingredientes, receitas e técnicas tradicionais.
A maioria viaja por seus territórios em procura de conhecimento e entendem que gastronomia é muito mais do que paladar –é também política, economia, sustentabilidade, sensibilidade, curiosidade e arte. Eles reverberam os estudos de Niño Perez em torno da filosofia, estética e neurociência para compreender a força e a jerarquia dos sentidos. A gustação, finalmente, incorpora as interpretações da audição, do olfato, do tato e da visão.
Enquanto a artista evita “atalhos sensoriais”, propondo uma prática que nega a visualidade, estes chefs se empoderam da dificuldade do que vem da nossa terreno para gerar composições sedutoras que transportam o conviva para os muitos ecossistemas e culturas da América Latina.
Mas eles garantem: não é só sobre estética. “Fazer um prato bonito não é gerar arte. Precisa manifestar um pouco, resolver um problema. Cada receita tem uma função política, social ou econômica”, ressalta Espindola. Martinez concorda e defende a venustidade uma vez que valor, e não uma vez que secundário: “Arte, para mim, é um nível de transcendência que tem o poder de desembaçar o que os olhos não podem enxergar”.