Talento precoce no tênis de mesa, o paulista Luca Kumahara, 28, está sendo obrigado a rever a sua trajetória no esporte.
Com três Olimpíadas e medalhas em Jogos Pan-Americanos no currículo, Kumahara é também o primeiro varão trans da modalidade.
Imerso desde cedo no universo esportivo, ele conta que, embora se identificasse com o gênero masculino já na puerícia, por muito tempo nem pensava a reverência da transição.
Até que, em meados de 2019, passou a ter contato com vídeos no YouTube sobre o tratamento hormonal com testosterona e decidiu que era aquilo que queria para si.
“Para homens trans, tanto na sociedade porquê no esporte, é muito mais fácil do que para as mulheres trans, infelizmente”, diz Kumahara à Folha.
A estreia na categoria masculina aconteceu no termo do ano pretérito. Kumahara diz que a principal diferença que sentiu foi no saque, que, segundo ele, é mais ‘roubado’ entre os homens.
E, apesar de difícil emocionalmente, serviu para que o mesa-tenista conseguisse enxergar com mais perspicuidade o caminho que precisa seguir para continuar vivendo do esporte. “Não vou só me focar em um objetivo, sem olhar se a minha vida está indo para frente.”
Quando você começou a pensar em fazer a transição de gênero? Sempre me identifiquei com o gênero masculino, desde as minhas primeiras memórias. Mas, porquê entrei muito cedo para o esporte, que é 100% binário, separado em feminino e masculino, fiquei muito imerso nesse mundo e não enxergava porquê uma possibilidade fazer a transição de gênero. Quando eu digo fazer a transição, é falar para as pessoas porquê me identifico. Muita gente acaba tendo uma teoria equivocada de que a transição envolve procedimentos, e, na verdade, ela acontece quando você assume outro gênero, não precisa passar por cirurgia, por mudança de nome, por tratamento hormonal, você só precisa assumir.
O que te fez passar a pensar a reverência? Em 2019, comecei a testemunhar aos vídeos de um youtuber trans que falava sobre o processo dele, e foi a partir daí que tive contato com mais informações sobre o tema. Ouvi ele falando sobre o tratamento hormonal com testosterona, as mudanças que traziam, principalmente estéticas, e pensei que queria muito fazer. Foi quando comecei a traçar um projecto.
Porquê foi o planejamento? Na idade estava voltando para a seleção, em seguida um período em que fiquei bastante desanimado e quase parei de jogar. Só que voltei melhor do que antes, e foi um momento importante para mim profissionalmente por conta das Olimpíadas de Tóquio. Porquê 2020 estava perto, decidi esperar e tracei o projecto de tentar jogar no feminino até Paris e depois iniciar o tratamento.
O que te fez antecipar os planos? Depois de Tóquio, a percentagem técnica foi renovada e vi a seleção feminina com um técnico que estava indo na mesma risco de trabalho que os atletas. Mas a confederação brasileira decidiu trocar o técnico e não concordamos. Tentamos esgrimir, mas não voltaram detrás. Até logo, estava priorizando minha curso no feminino, até porque, com o tratamento, daria positivo para o doping na categoria. Porquê a troca de treinador me desanimou muito, deixou de fazer sentido retardar uma coisa tão importante do lado pessoal.
Sofreu preconceito pela decisão? Até agora, foi tudo muito tranquilo. Sempre falo que para os homens trans, tanto na sociedade porquê no esporte, é muito mais fácil do que para as mulheres trans, infelizmente. Foi tudo muito tranquilo em relação ao patrocinador, à confederação. Apesar de ter tido problema com a confederação em relação à troca de técnico, sobre a transição foi tudo muito bom, desde o início eles me apoiaram bastante.
Porquê foi sua estreia no masculino no Campeonato Brasílico, em dezembro de 2023? Foi uma estreia muito complicada emocionalmente. Não achei que ia ser tão dissemelhante, porque já vivi tanta coisa no esporte, e achava que conseguiria mourejar com as emoções, mas elas eram muito diferentes. O motivo, a origem das emoções era muito dissemelhante de todas as outras coisas que passei na vida, por isso foi tão difícil de mourejar com elas. O primeiro jogo, na teoria, não era para eu ter me complicado tanto, mas foi muito disputado. Foi muito difícil mesmo, mas, pelo menos, começou. Esse passo foi mais importante do que imaginava.
Por quê? Não estava a termo de competir ainda, queria esperar mais um pouco, mas foi importante para ver o que preciso fazer, o caminho que preciso tomar.
Qual é esse caminho? Principalmente em termos de planejamento de competições. O campeonato paulista, por exemplo, não jogo faz muito tempo, quem está na seleção geralmente não joga, são torneios em que as condições normalmente não são muito boas, a mesa, o lugar, a bolinha. Mas, depois do Brasílico, me dei conta que preciso ser humilde e reconhecer que preciso disso, vai ser um passo importante. Tenho que estar disposto a isso se quiser melhorar.
O sr. sentiu muita diferença em relação aos jogos no feminino? Senti diferença no saque, que é um fator determinante para o jogo. No masculino, o saque é mais ‘roubado’, porquê falamos no esporte, em que os jogadores não seguem as regras à risca. São aspectos porquê a profundeza em que a mão tem de estar posicionada, a posição do corpo, a direção da esfera. Não posso nem falar de conhecimento, de o saque ser melhor no masculino, porque, na verdade, ele é ‘roubado’. Se as jogadoras se valessem da mesma estratégia, talvez o saque teria a mesma eficiência. Acho que tem a questão da crédito masculina e da cobrança em cima das meninas de sempre fazerem tudo certinho, de aspectos mais sociais mesmo. Vou ter que aprender a mourejar com isso, não só para conseguir recepcionar, mas para não passar raiva.
Ainda vê alguma possibilidade de estar em Paris-2024? Paris é impossível, a equipe já está praticamente fechada e, mesmo que não estivesse, existem muitos jogadores que estariam na minha frente. Tenho que ser muito realista em relação à expectativa.
E pensando em Los Angeles-2028? Tenho que pensar primeiro em tentar estar na seleção, porque vejo que é alguma coisa difícil. Hoje é mais um sonho do que um objetivo. Meu objetivo a pequeno e médio prazo é continuar vivendo de ser jogador de tênis de mesa, porque agora começa tudo de novo. Se um clube me procura para jogar e me pergunta quanto quero receber, não sei expor, porque não sei o que posso oferecer para eles em termos de resultado. No feminino, sabia o que poderia oferecer, no masculino, não. Esse é o maior repto para que eu consiga continuar vivendo porquê um jogador de tênis de mesa. É alguma coisa que quero muito, mas as contas têm que fechar. Não vou só me focar em um objetivo, sem olhar se a minha vida está indo para frente.
Relâmpago-X | Luca Kumahara, 28
Procedente de São Paulo, Luca Kumahara é o primeiro mesa-tenista trans da modalidade. Fez sua estreia pela seleção brasileira adulta com 13 anos e participou das Olimpíadas de Londres-2012, Rio-2016 e Tóquio 2020. Ganhou a prata por equipes e o bronze no individual nos Jogos Pan-Americanos de Toronto-2015.