Na semana em que é comemorado o Dia do Orgulho LGBTQIA+, a reportagem da Dependência Brasil fez uma entrevista exclusiva com Nelson Matias, presidente da Associação da Paragem do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo. O evento, que começou em 1997, já foi considerado o maior do mundo pelo Guinness Book em 2006, quando reuniu muro de 2,5 milhões de pessoas.
Nelson fala sobre a valor de manter o caráter político e não exclusivamente festivo da Paragem e alerta sobre a urgência de as batalhas ultrapassarem o mundo virtual: “zero substitui a força das ruas”. Na edição deste ano, realizada no dia 2 junho, o tema foi “Basta de negligência e retrocesso no Legislativo: vote consciente por recta da população LGBT+”.
O líder da organização diz que é preciso fortalecer a luta diante do progressão de forças conservadoras e reflete sobre a possibilidade de intensificar a união com outros movimentos sociais, uma vez que o preto e o feminista. Outro tema abordado é sobre uma vez que estabelecer relações coerentes com empresas que exploram o chamado pink money (mercado de consumo LGBT+).
Confira a entrevista:
Dependência Brasil: O tema da Paragem neste ano foi a valor de políticas públicas, com foco na representatividade no Legislativo. Por que escolheram esse foco?
Nelson Matias: Primeiro, queríamos denunciar que o Poder Legislativo no Brasil precisa ultimar com a extrema negligência sobre os direitos LGBT+, principalmente no Congresso Pátrio. A falta de legislação específica de combate à LGBTfobia deixou lacunas que precisaram ser preenchidas pelo Judiciário. Todas as conquistas que tivemos ao longo desses anos foi pela ação do Judiciário, em relação à preterição deste Legislativo. Vou referir um exemplo muito simples: a criminalização da LGBTfobia foi reconhecida recentemente pelo STF. A gente tinha um projeto de lei, o 22/2006, que tinha esse objetivo. O projeto não só não foi disposto uma vez que tarifa, uma vez que foi excluído, não existe mais. Ou seja, o Congresso Pátrio simplesmente apagou qualquer possibilidade de fazer essa discussão.
A gente chamou a comunidade para debater isso, porque entende que a Paragem não é da ONG, é de todos. E, nos últimos anos, temos adotado essa prática de falar sobre eleição nas paradas que acontecem em períodos de eleição. E nessa tarifa sobre o Legislativo, entendemos que além de não validar leis sobre nossos direitos, querem retroceder. O casório foi guardado pelo STF. E o Legislativo, recentemente, aprovou um projeto de lei que impede pessoas LGBT+ de ter o seu casório reconhecido. A gente viu essa manobra dentro do Congresso. Não sabemos ainda se vai passar.
E a gente tem observado na história política do país que isso só vai mudar se a gente conseguir fazer uma frente de luta. Porque os congressistas eleitos que formam as bancadas evangélicas, do agro e da projéctil têm uma coalizão muito poderoso. E são grupos que não primam pelas pautas progressistas.
A gente tem um proveito quando começa a trazer essa tarifa da eleição. Conseguimos optar duas pessoas trans: Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). Temos um senador francamente gay, o Fabiano Contarato (PT-ES). Somos infinitamente pequenos perto do universo dessas bancadas. Porém, se pensar que isso seria impensável há 10 ou 20 anos, significa que de alguma forma a gente conseguiu conscientizar um pouco os nossos pares e os nossos aliados.
Pensando nisso, nos últimos anos a gente tem reforçado para a população LGBT+ que é preciso votar nas pessoas LGBT+ e ampliar nossa presença no Legislativo. Agora, eu preciso ter um voto crítico também. Não pode votar em alguém LGBT+ que não tenha compromisso com as pautas LGBT+. Cá em São Paulo, tem um vereador trans eleito que não fala das pautas das pessoas trans. Tem um varão preto de direita que fala contra as pautas de cotas raciais e LGBT+. Portanto, eles não nos representam.
Dependência Brasil: A história da mobilização LGBTQIA+ no Brasil é longa e envolve contribuições de diferentes gerações. Os jovens LGBTQIA+ estão se engajando em continuar essa história, seja por meio das paradas ou de outras formas de luta?
Nelson Matias: Toda sociedade passa por processos de renovação e enfrenta questões intergeracionais. Eu cheguei em 1997 na Paragem. Isso tem 27 anos, portanto, pessoas hoje nessa filete etária estavam nascendo quando eu comecei. De uns anos para cá, a Paragem ficou extremamente jovem. E isso é importante. Quando eu cheguei, existiam outros antes de mim que eu reverencio muito. Sem essas pessoas, não estaríamos no patamar que estamos hoje, mesmo com todas as questões de LGBTfobia que ainda enfrentamos.
A única coisa que eu tenho cobrado dessa militância mais jovem é que, por mais que haja uma valor no uso da internet e das redes sociais, zero substitui a força da rua. Eu, com 58 anos, tento me apropriar ao supremo nessa interação do mundo virtual, que eles dominam muito. Porém, a força da rua é muito poderoso e diz muito sobre nós. Porque, a partir do momento que eu saio de trás de uma tela e vou para a rua, eu estou fortalecendo os indivíduos que estão ali enquanto cidadãos. O que nós precisamos agora é justamente que essa juventude também entenda dessa forma.
Isso é importante ao dar perenidade nessa luta, que é diária e regular. E é normal que essa juventude aflore cada vez mais, porque ela chegou em um momento histórico que pode ter uma maior facilidade para ser gay. Mais do que era em 1997, ou em 1969, em plena ditadura militar. Muito mais fácil ser uma Pablo Vittar hoje do que ser um Ney Matogrosso em 1970, desafiando todas as restrições políticas do país. Você vai ver, por exemplo, a população indígena e a de matriz africana, e elas têm todo um histórico de se referenciar àqueles que vieram antes delas. Eu sinto falta disso na comunidade LGBT+.
‘Ah, mas o LGBT+ ainda está fora do mercado de trabalho, ainda sendo expulso de vivenda, ainda sendo assassinado’. Sim, isso é veste, mas muito menos do que foi antes. Você pode mostrar sua afetividade em público com um risco muito menor de ser agredido ou violentado do que era há 20 anos. Isso é uma conquista das ruas. Quando eu encontro com os mais jovens, falo que a gente se prepara para que eles continuem carregando essa bandeira, porque a gente está envelhecendo. Provavelmente, vão lutar a partir de novas dinâmicas, mas ainda vão precisar ocupar as ruas e outros espaços de poder.
Dependência Brasil: A Paragem de São Paulo teve patrocínio de grandes empresas. Vocês selecionam os parceiros de congraçamento com a afinidade de valores LGBT+? Uma vez que lastrar a urgência de captar recursos com o zelo de não se associar a uma marca que pretende exclusivamente lucrar com a bandeira do movimento?
Nelson Matias: Lá detrás, quando a gente fez as primeiras paradas, tinha pouco recurso. Em alguns momentos, a gente tinha esteio basicamente dos sindicatos. Quando a gente começou lá detrás, não tinha ainda essa coisa do pink money ou das empresas abraçarem as pautas transversais, da população LGBT+, das mulheres, meio envolvente e da população negra. Isso é muito recente. E quando vieram as empresas, discutimos quais seriam os critérios. Vamos concordar tudo ou não?
Eu prefiro fazer uma Paragem sem moeda, do que receber recursos de uma empresa, por exemplo, que pratica o trabalho análogo à escravidão. Ou que não tenha minimamente uma política dentro da sua empresa voltada para os funcionários LGBT+. Quando as empresas começaram a nos procurar, a maioria já tinha pelo menos um pequeno trabalho interno nesse sentido. E é isso que a gente continua cobrando. Que as empresas nos vejam uma vez que consumidores não tem problema. Elas vivem disso, são secção de um sistema numulário. Não vamos ser ingênuos de que funcionaria de outra forma. Porém, dentro desse sistema, eu também sou um cidadão. Portanto, quais são as políticas de cidadania que essa empresa está implementando?
E a gente tem cobrado muito também das empresas que elas não abandonem as paradas. Temos visto algumas pelo Brasil com muitas dificuldades, porque recebem uma verba muito pequena. Eu posso fazer uma Paragem com pouco moeda ou com muito moeda. Mas é ele que vai dar o tom da grandeza. É o moeda que vai ordenar se eu posso ter mais trios, mais artistas, mais coloridos e bexigas. Mas se eu não tiver, tudo muito. É preciso lembrar sempre que a Paragem é, antes de tudo, uma sintoma, e vai continuar sendo assim.
Se em vez de milhões, eu colocar 100 milénio pessoas na rua, ainda vai continuar sendo uma das maiores manifestações desse país. Colocar 3 milhões de pessoas na rua em São Paulo não é fácil. Mas uma paragem com 100 pessoas no Sertão de Pernambuco é tão significativa quanto a Paragem em São Paulo. Hoje, as empresas basicamente só têm visto a Paragem de São Paulo, mas e as outras paradas no Brasil que passam muita dificuldade? Precisamos conversar com as empresas, mostrar que estamos em todos os lugares hoje. Somos o país com a maior Paragem do mundo e com o maior número de paradas no mundo. Marca que era antes dos Estados Unidos. Nós temos mais de 320 paradas realizadas no Brasil. Só no interno de São Paulo, eu tenho 52 paradas. Fora as paradas de periferia. A gente fez um cômputo no último encontro de organizadores das paradas, e colocamos nas ruas mais de 20 milhões de pessoas. É muito significativo.
Dependência Brasil: Do ponto de vista político, existe uma tentativa de unificar lutas com outros grupos historicamente marginalizados na sociedade? Ou há um entendimento de que, por terem diferenças, os movimentos precisam agir de forma separada?
Nelson Matias: Essa unidade é o sonho, a meta, mas ainda uma utopia. Eu tenho um lugar de privilégio: sou um varão gay branco, cisgênero. Passo totalmente despercebido na rua, porque eu não tenho nenhum traço que denuncia a minha homossexualidade. Mas em nenhum momento da minha vida me eximi de disputar pelos outros. Não quero ter um lugar de fala, por exemplo, de uma travesti, porque eu não vou saber quais são as dores de uma travesti. Mas eu posso me somar à luta dela. Eu não vou querer ter um lugar de fala de uma pessoa negra, porque eu não vou saber o que é o racismo sentido na pele, mas eu posso me somar.
Os movimentos sociais são muito enraizados na esquerda, no que ela prega enquanto ideologia progressista. Mas, nos últimos tempos, a gente vê muito o oração que vai na contramão do que está falando agora, de uma vez que unir as nossas pautas. Porque os nossos inimigos e o modus operandi são os mesmos. Por exemplo, o que discrimina uma travesti de uma mulher é a misoginia e o machismo. Os protagonistas são os mesmos. A direita faz isso com muita propriedade, quando as diferentes bancadas precisam se unir, mesmo com todas as suas divergências, se unem.
O problema de um feminicídio no Brasil é um problema meu. Eu não sou mulher, eu sou um varão branco gay, mas eu deveria me revoltar ao ouvir todo dia no noticiário que mulheres são assassinadas por homens machistas. Essa tarifa deveria ser minha. Eu deveria me revoltar com uma pessoa negra vítima de uma agressão. E quando há essas tentativas, muitas vezes existem reações contrárias, por não ser o meu lugar de fala. Pode não ser o meu lugar de fala, mas estou cá para lutar com você. Acho que o sistema tem justamente pânico disso e é por isso que os homens brancos que estão no poder combatem tanto a nossa existência.
A gente precisa se conscientizar que temos muito mais força juntos e unir as nossas pautas, porque temos mais coisas que nos unem do que nos separam. Somos vítimas do preconceito e da exclusão. Mas ainda temos problemas a superar, questões que nos atravessam uma vez que a consciência de classe social, porque você também vai ter os cortes de renda. Dentro de um sistema numulário, o que vale é o moeda. Se a travesti chegar no restaurante mais chique de São Paulo, no melhor carruagem importado, vão entender um tapete vermelho para ela. Agora, se ela chegar toda fuleira, vão invocar a polícia. A mesma coisa para uma pessoa negra.
Em qualquer momento eu ouvi de uma pessoa que a Paragem ficou feia e pobre. E por que ela estava dizendo isso? Porque a periferia desceu e ocupou a Paragem. Antes, havia muita gente de classe média. E é isso, nós somos essa variação. Nós somos essa dificuldade de estruturas sociais.
Dito isso, é um sonho meu e de muita gente tentar fazer um dia a Paragem que não é só LGBTQIA+, mas dos movimentos sociais. Não sei se eu vou estar vivo para ver isso, mas seria o vértice. Se um dia isso intercorrer, significa que foi game over para o lado de lá.