Clayton Promanação constrói em “Macacos” um manifesto teatral onde a irreverência e o deboche se tornam armas políticas. Com domínio da cena e embasamento histórico, o ator revisita a violência colonial sem desabar no lugar-comum da dor passiva. Seu humor ácido e postura desafiante desmontam eutanásias discursivas, expondo porquê o termo “macaco” atua porquê instrumento de desumanização.
A genialidade do espetáculo está na forma porquê Clayton transforma o palco nu em redondel de combate. A aparente simplicidade – somente um batom porquê suporte – revela-se potente dispositivo quando associado à sua capacidade de interação com a plateia. Um muxoxo da audiência pode detonar improvisos afiados, ampliando o debate racial em tempo real. Essa permeabilidade entre ficção e veras espelha a urgência do tema: o racismo não espera plateias passivas.
Sua abordagem desconstrói a expectativa de um “luto performático” sobre a negritude. Cá, a história negra não é narrada através de lágrimas concessionárias, mas pela fúria inteligente de quem domina o jogo discursivo. Quando cita Eduardo de Jesus Ferreira ou o goleiro Aranha, Clayton não os reduz a vítimas – os torna insurgentes simbólicos. A participação de Terezinha Maria de Jesus, mãe de Eduardo no espetáculo, corrobora essa tática: não é espetacularização da dor, mas incorporação da resistência.
A peça opera porquê palimpsesto histórico. Ao sobrepor Machado de Assis, Elza Soares e dados do Atlas da Violência, Clayton expõe a ininterrupção do genocídio preto – da senzala aos autos de resistência. Seu préstimo está em fazê-lo sem didatismo, mas com a potência de quem sabe que teatro político exige passar riscos. Os prêmios (Shell, APCA) e o reconhecimento internacional atestam: “Macacos” não fala sobre resistência – ele a pratica, transformando cada apresentação em ato de insubmissão epistêmica.
Promanação cria assim um teatro-maracatu: dança sobre ossos históricos com ritmo próprio, onde o batom cênico pode ser tanto arma quanto ironia. Não por contingência a peça ecoa globalmente – da Rússia ao Chile – pois seu grito crítico, longe de ser regional, desnuda o racismo porquê tecnologia de poder transnacional. “Macacos” não quer impressionar: quer incendiar plateias, deixando evidente que revisitar a história não é treino de nostalgia, mas tática de guerra.
Três perguntas para…
…Clayton Promanação
O adjetivo “macaco” é historicamente usado porquê instrumento de desumanização contra pessoas negras. Uma vez que a peça subverte essa vocábulo para torná-la um eixo de reflexão sobre racismo e memória?
A língua nunca é aleatória. Ela é sempre carregada de história, de sabor, de múltiplos sentidos. Quando um xingamento histórico se torna título de um espetáculo, isso pode suceder por duas razões fundamentais: pela perspectiva freudiana — essa dimensão verbal onde precisamos falar até esgotar o significado da vocábulo e neutralizar seu efeito — ou porquê forma de reposicioná-lo, realocá-lo em outro contexto, mesmo que momentaneamente, para reflexão. No caso de “Macacos”, trata-se de entender de onde nasce esse xingamento e porquê ele se sustenta.
Leda Maria Martins trouxe um insight fundamental durante minha pesquisa: às vezes precisamos pegar termos desses lugares obscuros, desses espaços sujos, justamente para limpá-los e ressignificá-los. Quando explico em cena a origem desse xingamento e sua conexão direta com nosso pretérito colonial, já estamos realizando um deslocamento importante. Porque informação é conhecimento, e conhecimento liberta. Tira a vocábulo do lugar do insulto automático e a coloca no espaço da reflexão sátira.
Isso gera uma série de questionamentos poderosos: agora que conheço a história por trás desse termo e sua perversidade estrutural, porquê posso ouvi-lo impunemente? Uma vez que posso permitir seu uso sem reação? E mais importante: porquê posso compartilhar esse conhecimento para que outras pessoas também se libertem dessa legado violenta?
Se reduzirmos progressivamente o número de pessoas desinformadas — porque a desinformação sempre gera violência — será que não conseguiremos diminuir a presença desse vocabulário opressor? Será que não perceberemos coletivamente o quanto esses termos estão anacrônicos, deslocados no tempo? Essas são as perguntas e provocações que carrego no espetáculo, porquê ferramentas de transformação.
“Macacos” reabriu o caso de Eduardo de Jesus, um jovem preto morto pela polícia no Rio de Janeiro em 2015, das quais processo havia sido arquivado. Uma vez que a arte pode reacender debates sobre injustiças históricas que o sistema jurídico insiste em olvidar?
O teatro carrega em sua núcleo uma felicidade histórica: foi nascimento da democracia no mundo. Desde sua origem, já trazia em si a vocação de nos fazer refletir sobre quem somos enquanto indivíduos na sociedade. Nas tragédias gregas, já se debatiam deveres, responsabilidades, direitos e prazeres humanos — tudo isso levado à redondel cênica. O mesmo ocorria no teatro africano, onde o cotidiano e a fé das pessoas se transformavam em temática para os palcos.
O teatro sempre esteve e sempre estará a serviço do povo, pois sua natureza só se realiza plenamente no encontro: entre quem conta e quem assiste, entre quem compartilha e quem recebe histórias. Essa relação vital com a humanidade é o que me emociona ao ver que, mesmo na contemporaneidade, o teatro continua pulsante, marcando seu espaço-tempo com as demandas e necessidades sociais de nosso tempo.
O que me enche de alegria com leste espetáculo em privado é testemunhar porquê o público anseia por teatro — porquê as pessoas querem testemunhar, refletir, repensar sua sociedade com olhar crítico. O teatro sempre responderá às necessidades humanas, e que privilégio conseguir fazê-lo hoje através deste solilóquio preto, ao lado de uma mãe que representa tantas outras mães, tantos filhos, tantos corpos negros que têm, supra de tudo, o recta inalienável de viver e sonhar. Que sorte a nossa ter o teatro porquê veículo dessa reflexão urgente.
Posteriormente as inúmeras apresentações, inclusive no exterior, porquê o público (principalmente não preto) tem reagido aos questionamentos sobre seu lugar numa estrutura racista? Há relatos de desconforto ou transformação de perspectivas?
Uma das experiências mais marcantes que tive com esse espetáculo foi a turnê internacional por 11 países no ano pretérito. Foi transformador perceber porquê toda sociedade carrega suas rachaduras, seus cacos, e porquê cada plateia se reconhecia nessa reflexão foi profundamente significativo.
Nos Estados Unidos, houve um momento principalmente emocionante: em seguida a apresentação, em que interpretei metade do espetáculo em português (com legendas) e a outra metade em inglês, a plateia se dissolveu em relatos íntimos. Imigrantes compartilhavam suas histórias, enquanto americanos ali presentes ouviam, reagiam, se misturavam ao diálogo. Era mais que um debate; era um espelho coletivo daquelas feridas que atravessam fronteiras.
Foi uma mistura intensa de experiências. Em cada lugar, um encontro social único. No México, por exemplo, a interação com o público foi principalmente impactante: murado de 40 pessoas levantavam as mãos, ansiosas para falar, trazendo questões profundas sobre o reconhecimento dos povos indígenas porquê pátria.
Na Holanda, houve um momento de confronto com a própria história. Quando mencionei, em inglês, o papel dos holandeses na colonização do Brasil, incluindo a invasão de Olinda, eles não somente reconheceram esse pretérito, porquê se desculparam e refletiram sobre o legado violento daquela idade. Foi um diálogo sincero sobre culpa, memória e reparação.
Já em Portugal, Macacos causou um frisson inesperado. Dentro de um festival, o interesse foi tão grande que quase precisaram de um teatro suplementar para acomodar o público. A peça me levou a programas de TV, capas de revista e sessões esgotadas. Mas o mais marcante foi ver a reação dos portugueses diante da nossa versão negra da colonização. Aconteceu justamente no mês em que se questionavam os livros didáticos do país e as narrativas que ensinavam. A ironia era palpável.
Cada país por onde “Macacos” passou deixou histórias queridas e cicatrizes expostas. Essas experiências mostram que, em todo o mundo, as pessoas estão reavaliando as narrativas que as formaram — e porquê essas histórias ainda ecoam na sociedade hoje.
Sesc Bom Retiro – parque Nothmann, 185. Campos Elíseos, região mediano. Sex. e sáb., 19h30. Dom., 18h. Até 18/5. Sessões extras: 12/6, qui., 19h30 e 20 e 21/5, ter. e qua., 15h. Duração: 180 minutos. A partir de R$ 18 (credencial plena) em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades. Dica do blog: se não conseguir comprar o ingresso, vale a pena tentar a fileira da esperança.