Uma das principais influências da escritora portuguesa Madalena Sá Fernandes, de 31 anos, é Clarice Lispector.
Em Lisboa, na puberdade, ganhou de presente do pai, o político José Sá Fernandes, o livro de crônicas “A Invenção do Mundo”. Anos mais tarde, já na vida universitária, passou quatro anos estudando literatura no Rio de Janeiro. Instalou-se num apartamento na rua Gustavo Sampaio, no bairro do Leme –e descobriu que morava na mesma rua onde Lispector passara a maior segmento da sua vida.
O título do primeiro romance de Sá Fernandes, “Leme”, é em segmento referência ao período que a autora viveu no Rio de Janeiro, que considera transformador para sua vida e sua literatura.
“Na universidade brasileira, ao contrário de Portugal, há uma certa falta de sobranceria, os professores riam e declamavam poemas”, diz, em entrevista em Lisboa. “O Brasil me ajudou a ter liberdade e alegria na escrita, apesar de o tema de ‘Leme’ não ser zero satisfeito.”
O livro, lançado em 2023 em Portugal, onde já está na sexta edição, sai agora pela Todavia. “Leme” é a história de um relacionamento censurável pelos olhos e ouvidos de uma garoto. A narradora acompanha, do quarto ao lado, as brigas diárias entre a mãe e o padrasto, que algumas vezes descambam para a violência corporal. O livro descreve cenas de brutalidade verbal e física, sem que se saiba as razões pelas quais o parelha discute.
“Eu tentei passar muito a questão do fragor, do que se ouve para lá das portas, nas várias divisões de uma mesma moradia. Falo mais do impacto que isso teve na garoto do que nas eventuais razões, que também escapam à compreensão de uma garoto.”
O personagem mediano do livro, o artista plástico Paulo, é fundamentado no padrasto de Sá Fernandes na vida real — a obra se enquadra no gênero da autoficção. Paulo toma conta do romance e é retratado em pinceladas fortes, enquanto as outras personagens, incluindo a mãe da protagonista, aparecem esmaecidas.
“Esses homens abusivos ocupam a história por completo e acabam por extinguir outras figuras”, diz Sá Fernandes. “É precisamente isso que uma relação abusiva de violência doméstica faz, não é? Procurar exterminar o outro, expulsar a luz do outro.”
O relacionamento entre o artista plástico e a mãe da protagonista durou 12 anos, ao longo dos quais a autora delineia as várias nuances de Paulo. Ele é explosivo e às vezes pode se tornar violento, mas é ao mesmo tempo paternal e amoroso com a enteada, com quem manteve alguma proximidade mesmo depois da separação.
Para o retrato, Sá Fernandes diz ter bebido nos vários textos que Virginia Woolf escreveu sobre o pai dela, Leslie Stephen, um varão também explosivo e egocêntrico. “Woolf me ensinou a entender a anfibologia.”
A autora é também historiador do jornal O Público, um dos mais lidos de Portugal, e contabiliza mais de 200 milénio seguidores no Instagram. É verosímil rastrear um “making of” do livro – incluindo fotografias das pessoas reais que inspiraram os personagens – nos textos de Sá Fernandes na prensa e na rede social.
Ela diz que trabalhava em dois romances, inteiramente ficcionais, quando seu psicanalista a convenceu a narrar a própria história num livro. “Era a quadra da pandemia, eu fazia sessões online”, lembra. O terapeuta morreu de Covid.
Um perceptível tom de crônica perpassa a narrativa de “Leme”. Na quadra em que conversava com o comentador, a autora leu uma frase do plumitivo americano Ernest Hemingway: “Escreve de forma dura e clara sobre o que dói”. Seguindo esse mantra, o ritmo do romance se estabelece em frases curtas.
“Tentei fazer um livro que não fosse muito floreado nem excessivamente adjetivado, ou com muitos advérbios, muita poeira”, afirma. “Eu tentei ir à forma mais crua que me foi verosímil, porque achei que para esta história era a forma que servia melhor.”
Depois de se libertar da própria história, Sá Fernandes pretende voltar ao caminho que traçara antes para sua obra. “Ao mesmo tempo que a autoficcção me atrai, vejo esse movimento com alguma preocupação. É importante que a literatura mantenha o seu lado ficcional, alicerçada na fantasia e na imaginação.”