Ricardo Guilherme Dicke morreu em 2008. Seu corpo está enterrado em Cuiabá. No prefácio da novidade edição de “Madona dos Páramos”, ficamos sabendo da letreiro gravada em seu túmulo: “Deus é um grande mágico que fabrica realidades”.
Dicke é um dos autores brasileiros que melhor brincou de Deus. Seu romance de 1982 não se passa no sertão do Mato Grosso, mas no sertão fabricado pela linguagem transbordante do responsável. A liberdade, tão almejada pelos jagunços do livro, está do lado de quem narra. Distante da escrita seca e urbana, que marca a produção do período, já nas primeiras páginas somos atingidos pela capacidade sem igual do responsável de gerar imagens, de imaginar mundos.
A sensação perdura. Somos tragados pelo sertão onde vagueia o grupo de jagunços que se formou depois uma grande fuga do presídio da capital. Maltrapilhos, doentes, famintos e exaustos, eles têm dois objetivos: evadir da grande operação policial que imaginam ter sido montada para capturá-los, e chegar à terreno mágica da Figueira-Mãe, onde finalmente descansariam de uma vida de sofrimentos.
Com vasqueiro virtuosismo para manusear a linguagem, o responsável procura reencantar a natureza, tanto a da paisagem sertaneja porquê a interno dos personagens. No entanto, os fora da lei não se entregam facilmente.
Os infinitos diálogos sobre a existência do Diabo e do Inferno, e também do lugar mágico que perseguem, soam muitas vezes porquê palavrório. Servem para combater o tédio e são encerrados de forma brusca: “Mas que Deus e o Demo? […] Nunca houve nem existiu”.
A narrativa superabundante em terceira pessoa se choca portanto com esses diálogos ocos. São registros literários de diferentes tempos: o mítico e o moderno. E é justamente nessa lacuna que pode estar a atualidade do livro.
Diferentemente do que disse Antonio Candido sobre “Grande Sertão: Veredas” —”o sertão é o mundo”—, o sertão de Dicke não é o mundo, mas está no mundo. A primeira herdade invadida pelo grupo tem sua riqueza construída pelo contrabando internacional: “Boiadas, diamantes, carros, mulheres, marijuana, tudo entra por cá, até o portão da herdade Boa Vista, vindo da Bolívia e do Peru, por aí afora”.
A “moça sem nome”, sequestrada pelos invasores, é tida porquê santa pelo grupo. No entanto, não apresenta qualidade alguma que comprove a santidade, exclusivamente a fisionomia muito cuidada e certos signos de que pertence a outra classe social. É levada pelo grupo em seu “pijama de seda” trazido pelo marido de “viagem a Cuiabá” depois encomenda a “um companheiro de Paris”.
A segunda herdade saqueada é a dos “gringos ricos”, “gente que manda para seus países os tais minérios preciosos às escondidas”. “Quem é que sabe o que tem por cá, eles com suas máquinas poderosas examinando e observando tudo pacientemente em santa sossego?” Se de um lado as máquinas e o luxo fascinam, e o lugar é confundido por um momento com a Figueira-Mãe, os jagunços não são bobos, e decifram a pilhagem numulário internacional: “Estamos mexendo com ladrões, disso tenho certeza”.
Quando o romance foi lançado, a volume de brasileiros já travava suas lutas por sobrevivência nas periferias das grandes cidades. Aquele era o país do Hector Babenco de “Pixote, a Lei do Mais Fraco”.
A violência no livro remete a essa novidade verdade. O grupo não guerreia a mando de fazendeiros com o intuito de manter a ordem. Não há batalhas épicas com grupos rivais ou com as forças do Estado. Mata-se por matar.
As cenas são descritas com realismo feroz: “Amarramos os cabras na leito de parelha, despejamos por cima um galão de gasolina e tacamos incêndio, depois o que sobrou foi obra do vento”. Antes, o líder do grupo havia torturado uma das vítimas “com a ponta da faca, amolada que nem navalha, revirou o olho dele, assim porquê quem cavouca bicho-do-pé”.
O romance funciona porquê uma espécie de ponte entre dois tempos históricos: o do sertão-mundo e o das chacinas que marcariam a cena vernáculo na dezena seguinte ao lançamento.
A novidade cena ganharia sua melhor tradução com o lançamento do álbum “Sobrevivendo no Inferno”, em 1997, dos Racionais MC’s. Na toga, uma cruz e um versículo ecoam o sobrenatural. No verso, um varão armado. Na música médio, “Quotidiano de um Detento”, o Diabo existe, mas é só mais um desgraçado: “Já ouviu falar de Lúcifer?/ Que veio do Inferno com moral?/ Um dia no Carandiru, não, ele é só mais um/ Comendo rango azedo com pneumonia”.
Assim porquê o sertão, o Carandiru também está no mundo. Depois a chacina na prisão que deixou 111 mortos, “Adolf Hitler sorri no inferno”.
Theodor Adorno afirmou que “grandes obras são aquelas que têm sorte em seus pontos mais duvidosos”. São justamente esses pontos que garantem o interesse atual em “Madona dos Páramos”.