Se Madonna não tivesse subido ao palco gigante montado na praia de Copacabana, neste sábado (4), só sua presença no Brasil, e a iminência do show, já teriam sido suficientes para chacoalhar o país. Mas, com quase uma hora de detença, ela estava lá, reluzente, recebida sob os berros de uma povo de dimensões raras nas areias do Rio de Janeiro —murado de 1,6 milhão de pessoas, segundo a Riotur, empresa de turismo vinculada à prefeitura.
Começou com Bob the Drag Queen, companheiro de Madonna nesta turnê, pedindo para a música parar. Ele portanto fez um breve exposição sobre a vida da cantora, enquanto o telão mostrava imagens de momentos icônicos de sua curso.
O show seguiu o roteiro já divulgado da turnê “The Celebration Tour”, em que Madonna faz uma espécie de teatro, dividido em atos, da própria trajetória, sua primeira apresentação de retrospectiva da curso. Até as surpresas para o público brasílio eram conhecidas, já que ela não teve porquê ensaiá-las de maneira privada, e tudo que ela preparou virou notícia.
Foi o caso das homenagens a Cazuza e Renato Russo, entre outras personalidades, que morreram em decorrência da Aids, em “Live to Tell”. As imagens deles surgiram no telão enquanto Madonna era suspensa por uma plataforma no palco.
Antes disso, ela já havia cantado “Nothing Really Matters” e seu primeiro single, “Everybody”, antes de parar para conversar com a plateia. Com uma cerveja na mão, disse que seu português era “uma merda”, mas disse “caralho” na língua falada no Brasil.
Disse que o show era mágico, que o Rio é o lugar mais lindo do mundo, e que iria racontar a história de sua vida. Lembrou-se de quando chegou em Novidade York, com pouco numerário e muitos sonhos, quando era uma pessoa “brava, corajoso, ingênua, ideólogo, ridícula”, mas que tinha um sonho.
Cantou “Burning Up” e “Into the Groove”, recordou de quando tinha uma orquestra punk e cantava no CBGB. Não foram as músicas mais cantadas pelo público no Rio, mas deram uma teoria da pequena inquieta e desbocada que queria fazer —e fez— o mundo dançar.
Se em “Hung Up” Madonna já havia causado alvoroço em Copacabana, a performance de “Vogue” foi a mais muito acabada representação do seu poder de fazer dançar. Ela chamou Anitta para atuar porquê jurada de uma espécie de desfile de ballroom, em que seus dançarinos —e uma de suas filhas, Estere— deixaram o público boquiabertos com os movimentos no palco.
Em termos de visual, o show de Madonna é também impressionante. Há lume contínuo, plataformas suspensas e passarelas que se relacionam com as músicas que ilustram. A estrutura de “Like a Prayer”, com homens suspensos pelos braços em uma plataforma que rodava, foi principalmente impactante.
Mas mais que ferro e madeira, o que importou foi porquê a parafernalha ficou encantada com os movimentos da cantora e seus dançarinos. Os movimentos milimetricamente ensaiados fazem justiça à dimensão artística de Madonna, que sempre se definiu porquê artista performática —faz música, artes cênicas, dança, audiovisual, tudo isso misturado.
Uma vez que uma gaiato levada, ela se lembrou que esteve no Rio algumas vezes e conheceu algumas palavras —citou “safada” e “bunda suja”. Disse ainda que o show em Copacabana não tinha a ver com numerário e que sentia o paixão dos fãs brasileiros “no coração e na boceta”.
Foi saudada em resposta com gritos de “Madonna, eu te senhor”, no ritmo dos leques batendo.
O Brasil também surgiu vibrante no palco na bateria de crianças de escola de samba e na bunda de Pabllo Vittar. A drag queen maranhense dançou com e levantou Madonna, ambas vestidas de camisetas verdejante e amarelas, em cenas que ficarão marcadas nas retinas dos brasileiros.
A americana cantou “Music” em versão incrementada pela bateria de escola de samba, num encontro zero usual entre a polirritmia acústica do ritmo brasílio e a rijeza seca do hit eletrônico. Comemorar a vida pela música, porquê nos desfiles na Sapucaí, ou no pop de Vittar, é a rostro de Madonna.
Em um dos momentos mais emocionantes da noite, Madonna se lembrou do camarada Keith Haring, artista que morreu vítima da Aids e faria natalício neste término de semana. Ela falou diretamente aos gays brasileiros, e disse que “vou lutar por vocês até o dia que morrer”.
Puxou em seguida “Express Yourself” em versão acústica. Era verosímil ouvir a plateia gritando a letra enquanto a praia de Copacabana estava iluminada pelas lanternas dos celulares.
Musicalmente, ela entrega o que promete. Usa backing tracks —faixas de backing vocal pré-gravadas— e canta por cima delas, porquê é generalidade na música pop. Se não tem orquestra ao vivo, os graves eletrônicos são um primor —muito, pelo menos para quem estava perto de uma das torres com caixas de som.
É muito verdade, e bastante procedente, que Madonna, aos 65 anos, não mexe o corpo porquê em décadas anteriores. Algumas de suas músicas também soam exclusivamente porquê uma sombra das versões originais nos remixes apresentados no palco —caso de “Ray of Light” e “Into the Groove”—, ou são cortadas de modo anticlimático —porquê “Like a Virgin” entremeada em “Billie Jean”, de Michael Jackson.
No show em Copacabana, todavia, foi porquê se isso pouco importasse. Em músculos e osso, para quem estava na dimensão VIP, ou porquê pixels num telão, para quem estava longe, mais urgente foi o que sua figura e toda a arte que emana dela representam.
É difícil mensurar o impacto de Madonna. Nos últimos dias, a cidade do Rio —recheada de turistas de dentro e fora do país— se transformou a partir da presença da estrela pop. Pessoas se fantasiaram, as ruas foram tomadas por música, sarau e uma alegria despudorada que é a rostro da artista.
Madonna nunca teve a ver só com esquina, dança, videoclipes ou indústria do entretenimento. Na verdade, em seu documentário “Na Leito com Madonna”, de 1991, ela afirma saber que não é a melhor cantora, nem a melhor dançarina. “Estou interessada em mexer com as pessoas, em ser provocativa e política.”
Quando veio ao Brasil pela primeira vez, há 30 anos, Madonna representava um choque para os costumes da sociedade vigente. Parece pouco tempo, mas quando a cantora estava no auge, seu trabalho foi boicotado por uma Igreja Católica mais influente que hoje em dia, além de massacrada de diversas formas pela opinião pública.
Se hoje uma cena de Madonna simulando onanismo, porquê na turnê “Blond Ambition”, não choca, é também porque a artista triunfou em sua guerra no campo dos costumes. Na primeira vez que ela apresentou “Like a Virgin” na MTV, nos anos 1980, ouviu que sua curso estava acabada porque mostrou um pedaço da bunda enquanto se abaixava no palco para pegar um sapato que havia derribado.
Em Copacabana, ela usou atrizes mascaradas para interpretar a si mesma em diversos momentos da vida. Em “Erotica”, contracenou com “ela mesma” jovem a cena de onanismo na leito. Não dá para manifestar que muita gente ficou chocada ao ver a cantora fazer referência à celebração do próprio prazer sexual no palco.
Ela também beijou no palco homens e mulheres —um de seus bailarinos chegou a simular sexo vocal em Anitta—, mas zero que não se espere da rainha do pop. Ver Madonna em 2024 é reconhecer a preço de seus gestos que desafiaram tabus para que outras pessoas —muitas delas, na plateia— pudessem também viver sem culpa.
A vocábulo culpa, aliás, é médio para entender Madonna. Progénito de italianos e de geração religiosa, ela parece ter construído uma curso inteira para se livrar —e, neste processo, livrar outras pessoas— da culpa católica. Culpa de não ser uma mulher submissa, de ter uma sexualidade fluida, de explorar sem limitações o libido sexual, enfim, de ter prazer no vício.
Ao trovar para tanta gente em Copacabana, Madonna vislumbrou o impacto de sua arte. Era porquê se pudesse tocar com as mãos o poder libertino que suas batidas, letras, voz e presença provocam —o sinal verdejante para que a povo experimentasse sem culpa a plenitude da pista de dança, mesmo que só por umas horas.
Com seus bailarinos, e porquê faz há quatro décadas, Madonna criou um espaço lúdrico onde destoar da heteronormatividade e da caretice foi mais que permitido —foi regra. Valia tudo, mais ainda se fosse para dançar varão com varão, mulher com mulher.
Em Copacabana, dissemelhante de outras ocasiões, esse espaço tinha o tamanho de um país, a maior pista de dança do mundo.