Mulher gostosa nunca foi novidade para ninguém. Mudam os costumes, mudam os valores, mudam o que as mulheres fazem para ser desejadas.
E dá-lhe dieta para emagrecer numa temporada, treino para ter coxa dura em outra, cirurgia para diminuir o peito, depois para aumentar o peito, preenchimento de bunda, paralisação dos músculos faciais e muita, muita tinta de cabelo.
Desde que o mundo é mundo. E não é que a sobrevivência da espécie humana não esteja intrinsecamente ligada a todo esse quiprocó, mas isso é matéria para outra pessoa, em outro espaço, com outro propósito. O indumento é que é assim.
Mas, até os anos 1980, tinha meio que uma separação precisa nos “estilos” de mulheres, principalmente nas mulheres famosas.
Tinha as gostosas clássicas, tipo Marilyn Monroe, que atraiam os homens, mas eram consideradas menos espertas, porquê se tanta venustidade fosse quase uma recurso, um jogo meio sujo na concorrência com as outras. Tinha as elegantes, tipo a Jackie O., a Audrey Hepburn, mulheres incapazes de qualquer vulgaridade. Mulher para matrimoniar, lembra dessa relevo?
Tinha as Lolitas, que fingiam inocência e procuravam o pescoço, o abrigo, a segurança dos braços fortes de homens poderosos e mais velhos. As vagabundas se mostravam inteiras e se ofereciam por aí, chocando as pessoas de muito. As boas moças, religiosas, obedientes e servis, donas de lar com talentos culinários, que cerziam as meias dos maridos e ajudavam os filhos com a prelecção. E as que queriam ser levadas a sério, intelectuais que quase escondiam seus corpos e seus impulsos vitais detrás de óculos e ideias complicadas.
Logo surgiu Madonna, e ela ignorou toda essa bobagem desde o início e misturou esses estilos todos, brincando em cada temporada de ser um deles. A única secção que ela rejeitou foi a da mulherzinha que “deixa” um varão transar com ela por gentileza, etiqueta ou obrigação. Ela queria. E queria muito.
Madonna não virou ícone gay por eventualidade, ela foi detrás disso, porquê de tudo que conquistou na vida e na obra, batalhando por cada micro pedaço de tudo que acumulou nos 40 anos de curso, esses que estão sendo celebrados nessa turnê.
O clichê do companheiro gay das mulheres tinha em sua sustentação dois pilares principais: o primeiro, o de ser um varão que poderia ser companheiro, só companheiro, e para sempre companheiro —ninguém cá vai ser louco de declarar que amizade de mulher com mulher não tem milénio atritos potenciais, e que amigas que brigam perdoam-se com mais facilidade que um companheiro gay e uma mulher.
O segundo, fundamental, era que o companheiro gay era uma pessoa com quem você poderia trespassar de dia e apresentar à família, mas que na surdina podia viver experiências sexuais incríveis e te narrar, mesmo que você nunca tivesse porquê chegar nem perto desse universo libertino e secreto. Ouvir as histórias já era um prazer, o prazer verosímil.
Sauna gay, meu Deus, sauna gay. O quarto escuro das boates, os banheiros das academias de ginástica, os “glory holes” (dê um Google), os encontros escondidos em que ninguém nem perguntava o nome de ninguém. Sentiu tesão, foi recíproco, rolava a transa e término. Quanta liberdade sexual, tudo tão simples, tão fácil, tão sem nó. Tão inacessível para uma mulher nos anos 1980.
E logo, porquê um furacão de outro planeta, Madonna realizou o libido secreto de uma grande porcentagem de nós: ela viu o que rolava entre os homens gays, quis para ela também e ainda abriu as portas para quem quisesse segui-la. Não é por eventualidade que o preconceito contra gays e a epidemia da AIDS foram as primeiras causas sociais que Madonna abraçou, quando ainda nem era obrigatório que toda notoriedade defendesse uma motivo social.
O mundo gay deu à Madonna a chave do prazer no sexo. E ela, por meio de suas músicas, sua atitude, suas entrevistas, seu documentário, o livro “Sex”, os clipes, os figurinos dos shows, os namoros, os casos, os casamentos e, simples, seu sucesso estrondoso, mostrou a todas nós, adolescentes nos anos 1980, que dava para jogar no lixo todas as convenções e fazer sexo porquê (alguns) gays.
Óbvio que, na pessoa física, já tinha muitas mulheres no controle de seus desejos e seus atos, enfim eram os anos 1980, não 1940. E a revolução dos costumes dos anos 1960 e 1970 não passou em branco, deixou um rastro enorme, a liberação das mulheres e a luta feminista teve um momento histórico nesse período, e a invenção da pílula anticoncepcional, nos anos 1960, foi fundamental para isso.
Mas ainda estava cada uma em seu quadro, e não tinha muita intersecção entre esses grupos, não. Não tinha uma mulher gostosa considerada inteligente e no controle de sua vida. E ser sexualmente voraz podia destruir a reputação de uma mulher. Não tinha marcha das vadias nos anos 1980.
Foi a Madonna que vestiu publicamente, pela primeira vez, na pessoa jurídica, para o mundo todo ver, esse protótipo de mulher que faz o que for preciso para transar com quem quiser, quantas vezes tiver vontade. E que ia ser gostosa, sim, para atrair potenciais parceiros, sim, mas era ela que ia escolher. E seria levada a sério porquê artista no processo.
E ainda brincou com fetiches, com sadomasoquismo, coisa considerada doentia, de gente perversa, perigosa. Ela foi lá ver do que se tratava e mostrou ao mundo. Talvez tenha sabido numa boate secreta do Meatpacking District de Novidade York, que hoje em dia é chique e dispendioso, mas que nos anos 1980 reunia os açougues e distribuidores de mesocarpo da cidade e cheirava a carniça. À noite abria umas boates sinistras em que pessoas também sinistras davam vazão aos seus desejos mais secretos.
Madonna levantou o véu que cobria esse submundo e convidou a gente para distrair com ela. Porquê dizia um verso de uma música dessa quadra, criado por Cazuza, a quem ela deve homenagear no show de domingo em Copacabana, foi porquê se ela dissesse para todas nós: “Vem comigo, no caminho eu explico”.
Eu fui.
