Madonna No Rio Espelha O Caos Da Nova York Onde

Madonna no Rio espelha o caos da Nova York onde ela surgiu – 03/05/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Madonna estava em chamas. Era verão em Novidade York, noite do seu natalício de 25 anos, quando ela subiu no palco da boate Fun House, famosa naquele início de dezena de 1980 pela cabine do DJ que ficava dentro da enorme boca de um palhaço, para gritar os versos de “Burning Up”, um de seus primeiros sucessos, tira de seu disco inicial, “Madonna”.

Na música, agora na setlist do megashow da artista na praia de Copacabana neste término de semana, no Rio de Janeiro, ela descreve seu corpo consumido pela brasa do paixão, ou tesão mesmo, mas lamenta que o branco de sua paixão nem sabe que ela existe. Os versos logo deixam simples que, sim, ela está ali de corpo presente, com um batidão dentro do peito que não vai parar nunca.

Não parou. Madonna, depois de quatro décadas de estrada, ainda surpreende e incendeia palcos. Mas um tanto ficou para trás, uma labareda que se apagou na maior metrópole americana. A Novidade York do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o universo que moldou a rainha do pop, não existe mais.

E isso é desastroso para artistas de agora, que só podem sonhar com a sensação eletrizante de uma cidade idem, um lugar que logo se reconstruía sobre os alicerces plantados por gente porquê Madonna. Eram loucos, delirantes, mentes e corpos que não cabiam em rótulos, malucos expansivos que chacoalharam a rígida geografia ortogonal das ruas esquadrinhadas a régua de Manhattan.

No endereço do Chelsea onde antes ficava a Fun House, hoje existe uma galeria de arte, a Paula Cooper. Todo o bairro, aliás, deixou de ser a paisagem cinzenta atravessada por ramais ferroviários que terminavam na zona dos abatedouros, açougues e curtumes, o Meatpacking District, para se transformar no epicentro do mercado de arte global.

Todas as casas mais poderosas do mundo ocupam esse pedaço no oeste da ilhéu e, mais ao sul, está o imponente Whitney, um dos maiores museus nova-iorquinos, rodeado agora de butiques reluzentes, algumas das lojas mais caras do planeta.

Tudo está muito longe da sujeira do underground. É o avesso daquela decadência libidinosa e grudenta que costuma ser o caldo de onde nascem verdadeiros artistas.

Mesmo o East Village, onde Madonna aportou vinda do interno do estado de Michigan e fez sua primeira morada solene em Novidade York, hoje é um reduto muito comportado de estudantes, a maioria herdeiros bem-nascidos, que estudam coisas criativas na Universidade de Novidade York, e velhos boêmios que se contentam com uma boêmia refreada de agora, festas com hora marcada para findar, bares e restaurantes com preços estratosféricos nos cardápios.

Isso em zero lembra os relatos de uma Madonna que desbravava o bas-fond literal de Novidade York quando recém-chegada, trabalhando no Dunkin’ Donuts ou servindo drinques detrás do balcão do Lucky Star, e revirando lixeiras à caça de sobras de fast food, dormindo entre ratos e baratas. O cenário, segundo conta o irmão da artista em sua recém-lançada biografia, “Uma Vida Rebelde”, lembrava aquele do filme “Blade Runner”.

Um clássico do cinema, a distopia de Ridley Scott mostra uma metrópole soturna, em que não para de chover, carros flutuam letárgicos entre arranha-céus de vidro, ciborgues vivem entre gente de músculos e osso e painéis luminosos anunciam lindas bobagens, um eterno glitch, ou falta do sistema, que era na verdade a ordem vigente.

O estado normal das coisas era o caos envolvido em vapor barato, espelho da Novidade York que era o oposto polar do subúrbio limpinho, de casas com jardim na frente e detrás, cachorrinhos brincando em volta dos carrões na garagem.

Não é vasqueiro ouvir de amigos americanos que a São Paulo e o Rio de Janeiro de hoje lembram aquela Novidade York suja, um laboratório de experimentos artísticos. No purgatório da venustidade e do caos, onde os palacetes dos ricos no asfalto roçam o morro dos desvalidos na orla mais cintilante do planeta, onde a bossa novidade de outrora deságua no funk de hoje, ainda resiste uma certa fricção que impulsiona uma cena cultural vibrante.

Madonna termina sua turnê de celebração da curso, o maior show de sua vida, muito longe da cidade onde se formou artista. Há um tanto de simbólico nessa procura pela divinização na capital do sangue quente, do melhor e do pior do Brasil.

Dizem os funcionários do Copacabana Palace que a diva anda nervosa com o calor da cidade, mas não seriam as altas temperaturas também uma memorandum daqueles primórdios fervidos? O que quer expor dar adeus a uma turnê desse porte na cidade tomada por milícias e ao mesmo tempo a Hollywood brasileira?

É porquê se um ciclo se fechasse, daquela Novidade York esquálida a um Rio de Janeiro de luxo superabundante só nas bordas, para poucos, a cidade que vê surgir na favela os seus maiores talentos, logo na crista da vaga da indústria. Anitta, a “self-made-woman” de Honório Gurgel, não por possibilidade deve dividir o palco com a americana.

Nesse curto-circuito temporal, vale lembrar que o coração luminoso e mercantil da velha Manhattan de Madonna, aliás, onde hoje subcelebridades e semifamosos pagam punhados de dólares para gravar por segundos qualquer tela publicitário com seus selfies, era o fervilhante epicentro da prostituição de garotos e garotas de programa e do tráfico de drogas da ilhéu quando Madonna lá chegou. Times Square, segundo a revista Rolling Stone, era o lugar mais desprezível dos Estados Unidos.

Não penso que à estação isso fosse um consenso. Madonna viveu na mesma Novidade York de Andy Warhol, de Keith Haring, de Jean-Michel Basquiat, com quem namorou, dos últimos beatniks ainda liderados por Allen Ginsberg e William Burroughs, dos minimalistas que dominavam o logo industrial bairro do Soho, dos primórdios dos B-52s, de Blondie e dos Talking Heads, de Tribeca antes de Robert De Niro e Jennifer Lopez, a mesma Novidade York do Studio 54, a pista de dança dos endinheirados e celebridades para valer, mas também dos inferninhos que ela frequentava e de onde se projetou para o mundo.

Estou falando de lugares porquê a Fun House, a Paradise Garage, a Danceteria e a Roxy. Se boates tivessem lápides, nos fariam suspirar de tristeza, tão limitado o pausa entre promanação e morte. Mas o estilo de vida rápido, a carência de um horizonte em obséquio de um presente em ebulição, era a tônica desses lugares, os buracos da noite onde Madonna poderia esbarrar em RuPaul, Vivienne Westwood, Grace Jones e afins.

São também os lugares que estruturam clássicos de seu repertório. “Vogue”, talvez o maior hino de sua discografia, não existiria sem a cena “ballroom” do Harlem, bairro logo dos negros e dos latinos que foi um universo riquíssimo para ela, dos passos de dança à pujança feérica da noite.

Mesmo décadas depois, Madonna celebraria o mesmo lugar no clássico álbum “Bedtime Stories” —o clipe de “Secret”, em que a cantora, vestindo um casaco de pele e com o pescoço enrolado em correntes de ouro, é uma ode a essa vibe avito da cidade que já foi o motor estético do mundo.

Um momento importante na biografia da artista, aliás, aconteceu na pista da finada Danceteria. Quando Madonna já estava no elenco de “Procura-se Susan Desesperadamente”, por um desses acasos felizes de uma estação que permitia acasos felizes distante da esterilidade das redes sociais, foi ali que rodaram uma cena de boate no filme.

A trilha sonora estava no bolso da cantora, a fita cassete com “Into the Groove”, que acabou entrando para a trilha solene do longa —essa é outra das canções clássicas que a diva deve trovar para 1,5 milhão de pessoas agora nas areias de Copacabana.

Há, no entanto, uma carência notável, sinal dos tempos talvez. No fervo de quatro décadas detrás, Madonna compôs “I Love New York”, um lado B gravado muito tempo depois, neste milênio, que vez ou outra invade uma setlist da cantora. É uma enunciação de paixão àquela Novidade York de logo, hoje sepultada pelo poder avassalador do numerário, de oligarcas e suas “penthouses”, uma cidade vítima do próprio fetiche, tão sexy que se tornou mumificada, playground de super-ricos inacessível para os mortais que são os artistas no início de tudo.

Nos versos, Madonna diz não gostar de cidades, a não ser Novidade York. Los Angeles é para quem morre de sono, Londres e Paris não importam. Se você não aguenta o calor, ou o tranco mesmo, melhor desabar fora. Seu coração só tem lugar para Novidade York.

Madonna, que sobe ao palco no Rio de Janeiro numa vaga de calor recorde para nosso outono tórrido, hoje mora no Upper East Side nova-iorquino, um bairro tão chique quanto rés. Ela está em outra, mas é perceptível de que se lembra do primícias de tudo, o que talvez faça o região das madames e dos poodles ser também a sua vivenda, o lugar da dona da porra toda.

Folha

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