Madonna: Novinhos Da Geração Z é Quem Mais Ouve A

Madonna se mantém relevante por sua essência de artista – 01/05/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

“Para mim, a intolerância no mundo está crescendo”, me disse Madonna. Se eu não fosse traído pela internet, poderia proferir que ela fez essa asserção pouco antes de aterrissar no Brasil, na última segunda-feira. Mas bastaria um Google para você deslindar que a citação é de uma entrevista que fiz com ela em julho de 2012.

E poderia dar mais evidências de que Madonna estava falando do mundo de hoje. “De um lado, gente que quer mais humanidade e reverência; do outro, gente sendo explorada porque são pobres ou têm lazeira, alvos de políticos que querem dominar com soluções fáceis”, disse ela ainda, doze anos detrás.

Só mais uma provocação e você já vai entender onde quero chegar. “Essas pessoas no poder dizem que se ficarmos livres de todos os gays, os muçulmanos, os somalis, nossa comunidade será melhor. São coisas que quem está numa situação difícil quer ouvir”, ela disse, evocando as fake news quando a frase ainda nem era popular.

Na véspera desse encontro, que aconteceu em Londres, eu havia testemunhado à turnê “MDNA”. E o show tinha, no seu visual superabundante, mensagens fortes e provocações explícitas que iam de imagens cristãs profanadas a um retrato de Marine Le Pen, figura poderoso da ultradireita francesa, em meio a suásticas nazistas. “É responsabilidade do artista invocar a atenção para o que está acontecendo no mundo”, disse ela de maneira ao mesmo tempo humilde e triunfal.

Ao rever entrevista esta semana, na minha preparação para vê-la sábado em Copacabana, tive uma espécie de epifania que me ajudou a responder à pergunta que todos fazem: por que Madonna é relevante até hoje?

Ora, porque é uma artista de verdade. Dotada não somente de uma capacidade surreal de criar músicas que sempre foram imediatamente absorvidas pelos nossos cérebros —e pés e quadris!—, Madonna captou muito cedo a teoria de que o que ela cantava era importante. Ainda maior, a teoria era transcrever em canções o que ela via à sua frente.

Num mundo em que a gente acha que se choca a cada polêmica tola que pisca nas nossas redes sociais, fica até difícil lembrar que “Papa don’t Preach” era provocadora. Ainda nos anos 1980, Madonna dizia ser “Material Girl” não para diminuir as mulheres, mas ressaltar que os homens que achavam que podiam comprá-las com quantia eram os verdadeiros trouxas.

Ninguém levanta hoje uma pestana quando Anitta transforma brilhantemente a vocábulo “puta” num batuque, na tira “Double Team” de seu recém-lançado “Funk Generation”. Mas dá para imaginar que beijar um santo preto em meio a cruzes em chamas, porquê Madonna fez no clipe de “Like a Prayer”, em 1989, requeria logo muito mais ousadia do que isso.

“Vogue” catapultou uma cultura marginalizada na viradela da dezena de 1980 para a de 1990. E nenhum fetiche era tabu para ela sussurrar “Justify my Love”. Se tudo andava muito escuro, veio a luz em 1998, com “Ray of Light”.

E antes de as discussões de gênero serem voga, ela confessava que havia tentado ser garoto, pequena e até uma bagunça em “American Life”, de 2003. E avisou em “Ghosttwon”, de 2015, antes de Donald Trump ser presidente, que “tudo vai para o inferno, temos que ser fortes”.

“Arte existe para seguir o que está acontecendo no mundo, fazer comentários sociais, questionar”, afirmou ela naquela mesma entrevista de 2012. E sempre foi assim com Madonna.

Num de seus livros mais recentes, o filósofo Byung-Chul Han, ao explorar a crise da narração, lamenta: “A sociedade está ficando cada vez mais pobre em experiências transmissíveis, que correm da boca ao ouvido”. E se não podemos mais voltar às narrativas em torno de uma fogueira, porquê ele sugere, as canções de grandes artistas talvez sejam o último recurso para conectar nossas experiências.

Vozes porquê a de Madonna estão desaparecendo. “A crise narrativa da humanidade se deve ao traje de que o mundo está inundado de informações”, escreve ainda o filósofo. Para velejar nesse mar, gerações cada vez mais perdidas dos anos 1960 para cá procuram respiros em canções que realmente falem sobre suas vidas.

Pense em Bob Dylan. Ou nos Beatles. Pense em Emicida, em Amy Winehouse. Rita Lee, Gilberto Gil, Morrissey, Renato Russo, Beyoncé. E compare com o resto que você ouve incessantemente no seu celular. Quem são os verdadeiros artistas? Os que têm visão. Entre eles, Madonna talvez seja a maior de todos.

Isso porque sua conexão não foi somente com uma geração, mas com todas as que vieram com ela desde os anos 1980 e que vão segui-la aonde quer que ela vá, desde que ela não abandone a teoria de que “a arte deve provocar, perguntar para receber respostas”, outra frase, evidente, que ela me disse em 2012.

E que tudo seja dito com perdão, venustidade e, se provável, humor. Ainda nessa entrevista antiga, terminei pedindo para ela responder a uma pergunta delicada que deveria fazer, se não seus fãs brasileiros me matariam. “Não quero ser responsável por sua morte”, retrucou ela com um sorriso.

“Por que você colocou um trecho da música de Lady Gaga no seu show: uma piada, uma homenagem, uma provocação?”. Resposta de Madonna: “Que tal todas as alternativas? Digamos que sou muito fã dela e que adoro saber que a ajudei a grafar aquela música.”

Falávamos logo do momento em que, no meio de “Express Yourself”, ela cantava versos de “Born this Way”, de Gaga. Foi a melhor maneira de fechar a conversa com essa artista superlativa, que não por casualidade é um sinal de perceptibilidade e de que tudo que uma pessoa porquê ela quiser proferir, vamos ouvir. Cantores passam. Artistas ficam.

Jornalista e apresentador, responsável de “A Fantástica Volta ao Mundo”

Folha

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