Maior Ataque A Religiões De Matriz Africana Atingiu 70 Templos

Maior ataque a religiões de matriz africana atingiu 70 templos

Brasil

Instrumentos musicais, indumentárias, estatuetas, insígnias e outros objetos sacralizados compõem um ror vasqueiro de 216 peças que foram roubadas em 1912 de terreiros em Alagoas, mas não destruídas, durante o maior ataque na história do Brasil a religiões de matriz africana. Esse conjunto de materiais resgatados, de valor histórico e cultural infinito, pode ser finalmente tombado neste ano uma vez que patrimônio cultural brasílico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Pátrio (Iphan)

O ataque ocorrido a partir da madrugada do dia 2 de fevereiro de 1912 (há exatos 112 anos), em incidente que ficou publicado uma vez que “Quebra de Xangô”, teria atingido, ao menos, 70 casas de religiões de matriz africana em Maceió e também em cidades vizinhas. De entendimento com pesquisadores, um grupo que se intitulava Liga dos Republicanos Combatentes promoveu, naquele dia, terror com invasões, vandalismo, espancamentos e ameaças, além de roubar objetos sagrados.

Esses objetos a serem tombados, expostos na era pelos agressores uma vez que símbolo de vitória, passaram a valer a comprovação do transgressão. O ataque foi cometido pela assembleia política que fazia oposição ao governador da era, Euclides Súcia, e o ‘acusava’ de proteção e proximidade aos terreiros. Por isso, prepararam aquele que se tornou um ataque sem precedentes de intolerância religiosa no país. Hoje, as 216 peças não destruídas estão sob guarda do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL).

Intolerância Religiosa - Peças do maior ataque de intolerância religiosa podem ser tombadas em 2024. Episódio em Alagoas, que ficou conhecido como “Quebra de Xangô, ocorreu há exatos 112 anos. Foto: Larissa Fontes/Divulgação
Intolerância Religiosa - Peças do maior ataque de intolerância religiosa podem ser tombadas em 2024. Episódio em Alagoas, que ficou conhecido como “Quebra de Xangô, ocorreu há exatos 112 anos. Foto: Larissa Fontes/Divulgação

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, publicado uma vez que Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Segundo o historiador Clébio Correia, da Universidade Federalista de Alagoas (Ufal), esse é o único caso registrado na história brasileira de quebra de terreiros de forma coletiva. “A gente tem episódios de invasão e quebra de terreiros em todo o Brasil, mas individualmente. No caso de Alagoas, houve verdadeiro levante de uma turba organizada por uma milícia chamada Liga dos Republicanos Combatentes, que era um braço armado do político Fernandes Lima, inimigo do governador Euclides Súcia, à era”, explica.

O historiador do Iphan Maicon Marcante lembra que muitos objetos sagrados foram destruídos e queimados em terreiro pública. “Porém, esse conjunto de objetos sobreviveu a esses ataques e permaneceu por um período no Museu da Sociedade Perseverança até 1950. Depois foram transferidos para o IHGAL”, afirmou Marcante. Foi por isso que a coleção de objetos ganhou o nome de Perseverança. O primeiro inventário das peças foi feito em 1985.

Hoje, as peças, segundo o pesquisador do Iphan, apresentam desgaste. O diagnóstico do Iphan para o tombamento vai orientar as ações de conservação e restauração. Os tecidos estão desgastados. Alguns fios de conta estão arrebentados. “Mas, de forma universal, as peças estão preservadas. A gente está falando de estatuetas representativas de orixás, de instrumentos musicais, indumentárias, objetos e insígnias. São mais de 40 braceletes e pulseiras”.

Intolerância Religiosa - Peças do maior ataque de intolerância religiosa podem ser tombadas em 2024. Episódio em Alagoas, que ficou conhecido como “Quebra de Xangô, ocorreu há exatos 112 anos. Foto: Larissa Fontes/Divulgação
Intolerância Religiosa - Peças do maior ataque de intolerância religiosa podem ser tombadas em 2024. Episódio em Alagoas, que ficou conhecido como “Quebra de Xangô, ocorreu há exatos 112 anos. Foto: Larissa Fontes/Divulgação

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, publicado uma vez que Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Mais divulgação

Maicon Marcante ressalta que, a partir do momento em que a coleção Perseverança for tombada pelo Iphan uma vez que patrimônio cultural brasílico, haverá a responsabilidade do órgão na preservação e acautelamento desses bens. Nesse momento, ocorre a tempo final de instrução de tombamento, que conta com a participação de representantes da comunidade de religiosos no processo de atribuição de valores e de significação cultural das peças. 

Ele explica que ao término da tempo de instrução, o processo passa por trâmites internos com avaliações na Câmara Técnica e no Parecer Consultivo, o que poderia ocorrer ainda no primeiro semestre de 2024. Depois o tombamento, além das ações de preservação, conservação e estudo da historiografia, devem ser tomadas outras medidas para maior espalhamento do incidente invisibilizado. “Devemos levar o conhecimento sobre esse ror, sobre esses objetos, para um público mais vasto, fora de Alagoas, inclusive. Podemos pensar em exposições virtuais também”.

Reverência aos ancestrais

 Entre as lideranças que colaboraram com o trabalho do Iphan está a Mãe Neide Oyá D´Oxum, de 62 anos. Ela afirma que os objetos e a memória do incidente de 1912 guardam o símbolo da resistência das religiões de matriz africana. “É a nossa história e com a qual podemos reverenciar a luta dos nossos ancestrais”. Um reconhecimento, segundo ela, veio em 2012, do logo governador Teotônio Vilela Rebento, que ediu desculpas, em nome de Alagoas, pelo incidente escandaloso de violência racista. 

Intolerância Religiosa - Peças do maior ataque de intolerância religiosa podem ser tombadas em 2024. Episódio em Alagoas, que ficou conhecido como “Quebra de Xangô, ocorreu há exatos 112 anos. Foto: Larissa Fontes/Divulgação
Intolerância Religiosa - Peças do maior ataque de intolerância religiosa podem ser tombadas em 2024. Episódio em Alagoas, que ficou conhecido como “Quebra de Xangô, ocorreu há exatos 112 anos. Foto: Larissa Fontes/Divulgação

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, publicado uma vez que Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação 

Entre esses fatos, Mãe Neide cita Tia Marcelina que, conforme foi documentado pelos religiosos de Alagoas, foi espancada na noite do Quebra de Xangô e acabou morrendo nos dias seguintes. “Enquanto ela era açoitada, disse que os agressores poderiam quebrar braço e perna, tirar sangue, mas que não conseguiriam tirar o saber dela”.

Para preencher lacunas

De entendimento com a professora Larissa Fontes, que produziu tese de doutorado na Universidade Lumiere Lyon (França) sobre as peças que restaram do ataque em Alagoas, a coleção Perseverança é o documento mais importante para a memória religiosa no estado. “São mais de 200 objetos que estão hoje abrigados no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas em estado lastimável, precisando muito de restauro, de um projeto sério de salvaguarda. A gente está nessa luta há muitos anos para o tombamento e caminhando agora concretamente para que isso saia neste ano”.

O livro da professora Larissa, O museu soturno, foi publicado na França. A obra será também impressa no Brasil. Larissa, que é pesquisadora e também religiosa, colaborou com o Iphan e informa que o dossiê a ser entregue para aprovação do tombamento já está praticamente pronto. “Na minha pesquisa de doutorado, fui detrás da biografia desses objetos, buscando a tradição verbal das comunidades religiosas afro-brasileiras de Alagoas, muito afetadas pela repressão e por esse silêncio”. Ela acrescenta que descobriu na pesquisa sinais e vestígios de perdas de materiais.

Larissa atribuiu essas lacunas à dificuldade de chegada e às peculiaridades da história. “Diferentemente de outros episódios de repressão que a gente teve no Brasil, que era a polícia que invadia terreiros, quebravam coisas e batiam em gente, e guardava os autos dos processos, em Alagoas, curiosamente, o Estado estava ausente da ação”.

A pesquisa atual da professora é um prolongamento da tese e pretende trazer de volta a Alagoas conhecimentos de perdas litúrgicas por meio de religiosos, autoridades religiosas que ainda detêm conhecimento na Bahia. “É muito importante essa ação patrimonial de recuperação e de reparação da memória”, afirma Larissa, docente do Departamento de Ciências Humanas e Sociais do Instituto Superior de Eletrônica e Tecnologia Do dedo, de Brest (França).

Intolerância Religiosa - Peças do maior ataque de intolerância religiosa podem ser tombadas em 2024. Episódio em Alagoas, que ficou conhecido como “Quebra de Xangô, ocorreu há exatos 112 anos. Foto: Larissa Fontes/Divulgação
Intolerância Religiosa - Peças do maior ataque de intolerância religiosa podem ser tombadas em 2024. Episódio em Alagoas, que ficou conhecido como “Quebra de Xangô, ocorreu há exatos 112 anos. Foto: Larissa Fontes/Divulgação

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, publicado uma vez que Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Para o historiador Clébio Correia, professor da Ufal, a despeito do Instituto Histórico ter cumprido papel de salvaguarda desse material, o entendimento dos “povos de terreiros” é que esses documentos deveriam estar em um museu, um memorial afro de Alagoas. “E não em um espaço da escol branca intelectual do estado. A gente está vivendo, neste momento, o processo de tombamento permitido, muito importante para prometer a proteção das peças”.

Na sua opinião, a coleção Perseverança é o símbolo maior do ataque e mobiliza hoje os terreiros de Alagoas. “É o que a gente labareda de prova material da resistência negra no estado. E gera esse ideário dos terreiros de ter um espaço próprio da memória em Alagoas”. 

“Prelo preconceituosa”

Em procura também de compreender o violento incidente, sitiado de apagamentos, o professor de antropologia Ulisses Neves Rafael, da Universidade Federalista de Sergipe (UFS), assinou a tese Xangô Rezado Insignificante, que faz referência à proibição, ulterior à repressão do dia 2, do uso de atabaques nos terreiros, o “rezado inferior”. 

Ele descobriu o incidente por possibilidade, durante o mestrado, e se surpreendeu que praticamente não havia pesquisa sobre o ataque. Assim buscou garimpar o quebra-cabeças em veículos, com publicações desde o início do século 20 até os episódios de 1912. “O Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de estudo) publicou uma série de oito reportagens”.

Para esclarecer as lacunas da violência, descobriu que a prelo teve um tom preconceituoso contra os terreiros. “A prelo foi instrumento dessa repressão. Os textos tinham uma linguagem muito preconceituosa e racista. Na verdade, eles tiveram papel fundamental na construção dessa imagem negativa dos terreiros”, explica o professor, que desenvolveu a pesquisa na Universidade Federalista do Rio de Janeiro (UFRJ) a partir do ano 2000.

Segundo a jornalista Valdeci Gomes da Silva, da Percentagem Pátrio de Jornalistas pela Paridade Racial, a prelo em Alagoas contribuiu, ao longo da história, com a reprodução do racismo. “Não foi dissemelhante no Quebra de Xangô. Porquê naqueles dias, até hoje há quem se refira aos rituais das religiões de matriz africana uma vez que magia negra. Isso é um termo muito racista e que a gente não pode permitir”. A pesquisadora avalia que os jornais demonstraram ser coniventes com a escol financeira.

O professor Ulisses Rafael, da UFS, acrescenta que as notícias do Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de estudo) tornaram os grupos ainda mais vulneráveis e foram capazes de mobilizar pessoas além da Liga dos Republicanos combatentes. “A campanha recebeu grande adesão da população, da sociedade social. Falou-se em centenas de pessoas nas ruas”. 

Os jornais informaram que os episódios ocorreram na madrugada, mas que, na verdade, já havia antes um clima de perseguição e de ataque. O próprio governador teria sido obrigado a fugir do Palácio pelos fundos e ido para o Recife. “Nesse pausa, em que ele se encontra distante, as casas são atacadas. As invasões acontecem em Maceió, em terrenos mais afastados e também em cidades vizinhas”. O professor não crava o número de casas atingidas porque não foi divulgado um quadro completo de terreiros com nomes das pessoas ou localização. 

Essa adesão de dezenas pessoas ao ataque contra terreiros é compreendida pela professora de antropologia Rachel Rocha de Almeida Barros, da Universidade Federalista de Alagoas, uma vez que sintoma de uma sociedade ainda escravagista, majoritariamente católica, provinciana e analfabeta.   “Imagine 100 pessoas correndo por Maceió em 1912, quebrando tudo”. 

Teria havido, na opinião da antropóloga, um planejamento prévio. Ao mesmo tempo em que existiam integrantes sem qualquer consciência, a Liga dos Republicanos Combatentes era social, com propriedade paramilitar, e constituída também por ex-integrantes da Guerra do Paraguai. Nessa mistura, essas pessoas, segundo explica, estariam vestidas de foliões carnavalescos quando chegaram aos terreiros. O Brasil vivia uma lógica racionalista, ainda escravagista e as manifestações religiosas de pessoas pretas eram desumanizadas. “A derrogação não tinha completado ainda três décadas”.

Quem também entende o papel “estratégico” dos agressores é o Pai Célio Rodrigues dos Santos, que é historiador. “Essa milícia procurou estudar qual era a data e os horários mais propícios de invasão aos terreiros (em vista dos momentos de homenagens e oferendas dos cultos). Eles chegaram trasvestidos de um conjunto carnavalesco. Tocavam, batiam e gritavam. Chamavam de macumbeiros, quebravam tudo, agrediram e ameaçaram”. Porquê efeito, segundo o Pai Célio, líderes religiosos correram, fecharam suas casas e saíram. “Mas resistimos. Hoje, Alagoas tem um grande número de terreiros, principalmente na periferia. E aí são esses terreiros que dizem não à intolerância religiosa”, avalia. Ele acredita que existam ao menos 3 milénio terreiros no estado.

Existem ainda outros efeitos, de entendimento com o professor Clébio Correio, para a identidade lugar.  “Quando lemos as notícias de 1910, vemos que Maceió era vista na era uma vez que uma referência para os negros de outros estados. Vinham pessoas saber as religiões afro. Depois do quebra, passou a se vender para o resto do país uma vez que uma cidade de coqueiro, de sol e praia”, lamenta. O resultado disso foi um esvaziamento do carnaval de Alagoas porque as manifestações culturais foram silenciadas. 

A professora Rachel acredita que o maior interesse por essa temática, em seguida os anos 2000, tem relação com a maior democratização do espaço acadêmico, coincide com a política de cotas e cria, com isso, reflexos nas temáticos sociais abordadas. “É muito importante ver que esse incidente revisitado gerou livro, discussões contemporâneas e também filme”.

O trabalho a que ela se refere é do professor Siloé Amorim, de antropologia da Ufal. O documentário 1912: o quebra de Xangô (confira cá o roteiro).

O filme, produzido em mais de três anos, tem 52 minutos de duração e foi motivado principalmente pelo silêncio sobre o ataque e o ignorância da população, inclusive dos terreiros. “Poucas pessoas tinham conhecimento do caso. Maceió tem muitos terreiros e isso era muito pouco divulgado. Me surpreendeu muito o preconceito velado sobre as religiosidades de matrizes africanas cá no estado”. Ele explica que a opção pelo filme tem relação com a premência de prometer visibilidade para um público maior a término de denunciar o que ficou tanto tempo em silêncio.

Veja galeria de fotos:

Fonte EBC

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *