Depois um dia de viagem em três ônibus, mais de século indígenas da Bahia chegaram neste sábado (7) ao Rio de Janeiro para participar da cerimônia de celebração do véu tupinambá, repatriado no início de junho. Convidados a participar do cortejo “Paragem 7”, em menção ao Dia da Independência do Brasil, eles percorreram as ruas em protesto por demarcação de terreno indígena (TI).
Com faixas “demarcação já” e “o véu é nosso” na risco de frente da sintoma, povos de três etnias (tupinambá, pataxó-hã-hã-hãe e kariri) marcharam de Cinelândia, no núcleo da cidade, até a Rossio Tiradentes. No termo da marcha, lideranças indígenas discursaram para o público.
Em sua fala, a cacica Jamopoty Tupinambá (Maria Valdelice Amaral de Jesus), 62, cobrou do governo federalista a demarcação da TI de mais de 48 milénio hectares, entre os municípios de Ilhéus, Una e Buerarema, no litoral baiano. Ela destacou que o retorno do véu ao Brasil, depois de passar quase 400 anos na Europa, reforça a relevância de reconhecer os direitos dos povos originários.
“O povo tupinambá foi o primeiro de ataque, foi o primeiro de encontro com os colonizadores, foi o primeiro a quase ser dizimado. Os livros de história diziam que não existiam mais os tupinambás, mas hoje o véu chega com aquela força, mesmo que esteja lá na bolha [museu], ele está trabalhando para nós”, disse à Folha.
Jamopoty liderou o grupo de trabalho de repatriação do véu, chamado pelos indígenas de “sábio ancião”. Ela deu prosseguimento a luta de sua mãe, Nivalda Amaral de Jesus. Em 2000, a matriarca chegou a ter entrada à peça na Mostra do Redescobrimento, que aconteceu no parque Ibirapuera, na capital paulista.
A partir desse encontro inédito com a peça, diz a cacica, os tupinambás chegaram ao consenso de que lutariam pela repatriação, que se concretizou mais de 20 anos depois. Segundo Jamopoty, o véu é protagonista de histórias contadas a gerações nas aldeias tupinambás.
“Ele [o manto] está trazendo a força, está dizendo ‘meu povo, eu ainda sou potente, eu sou um velho, mas eu sou um guerreiro, eu estou modificando algumas coisas’, e muita já coisa está acontecendo na nossa localidade, e ainda vai intercorrer coisa melhor, mas eu falo de demarcação de território, falo de um olhar dissemelhante para o povo tupinambá”, frisou.
A partir de segunda-feira (9), os indígenas realizarão uma programação restrita com rituais sagrados e vigílias até a quinta (12), quando ocorrerá a celebração pública de repatriação do véu, no Museu Vernáculo, que tem a tutela da peça. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, confirmou participação no evento, que deve relatar também outras autoridades do governo federalista.
Conflito no grupo de trabalho
Os indígenas e a gestão do Museu Vernáculo, ligado a UFRJ (Universidade Federalista do Rio de Janeiro), travam um embate desde a chegada do véu, no dia 4 de junho.
Segundo os tupinambás, o convénio definido no grupo de trabalha pela repatriação seria receber o véu com a cerimônia de celebração ainda no aeroporto, mas que a chegada da peça aconteceu de forma sigilosa e só foi informada depois.
Em nota enviada à Folha, a assessoria de prensa do museu negou que haja conflito entre as partes. Porém, no dia 19 de agosto, o Juízo Indígena do Povo Tupinambá de Olivença (Cito) publicou um vídeo em sua página no Instagram no qual mostra um desentendimento entre o diretor da instituição, Alexander Kellner, e os caciques, durante uma reunião na Bahia.
O gestor foi interrompido por indígenas em seguida negar a asseveração de que o povo tupinambá teria sido informado sobre a chegada do véu, via WhatsApp, quatro dias depois da repatriação. Kellner teve o microfone tirado de suas mãos, conforme mostra o vídeo inferior.
Em outra postagem, o Cito mencionou “violência místico”, em meio a fotos da reunião com a direção do museu na localidade tupinambá.
“A violência místico é uma forma insidiosa e profunda de agressão, que atinge a origem do ser humano, sua psique e sua conexão com o sagrado. Dissemelhante das formas físicas ou psicológicas de violência, a violência místico procura minar ou destruir a fé, as crenças, e a identidade místico de uma pessoa ou de uma comunidade”, afirma a postagem.
Por outro lado, o Museu Vernáculo diz que enviou a todos os integrantes do grupo de trabalho, inclusive aos indígenas, um email sobre a chegada do véu. A instituição afirma ainda que o transmitido foi impresso e mostrado aos tupinambás.
“É importante substanciar que, em momento qualquer, o diretor do museu, Alexander Kellner, classificou qualquer integrante do povo tupinambá porquê mentiroso. Ele somente esclareceu que não é verdade que os indígenas tenham sido informados pela direção do Museu Vernáculo, sobre a chegada do Véu Tupinambá, via mensagem pelo aplicativo WhatsApp”, diz a nota da instituição.
Véu tupinambá
O véu, uma peça de murado de 1,20 metro de fundura por 80 centímetros de largura, é considerado uma entidade sagrada pelos indígenas tupinambás. Ele teria sido levado à Europa por holandeses, por volta de 1644.
Confeccionado em sua maioria com penas de guarás, mas também com plumas de papagaios, araras-azuis e amarelas, a peça foi doada pelo Museu Vernáculo da Dinamarca, que detém desde 1689 outras quatro peças porquê essa.
Embora existam registrados 11 mantos espalhados pelo mundo, esta é a primeira vez que a peça fará segmento do pilha de um museu brasiliano.
De convénio com a pesquisadora Amy Buono, professora de história da arte da Universidade de Chapman, nos Estados Unidos, além da peça que agora está sob posse do Brasil, todas as demais estão na Europa, conforme a lista inferior.
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Copenhague, no Museu Vernáculo da Dinamarca, tem 4 mantos;
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Florença (Itália), no Museu de História Oriundo de Florença, tem 2 mantos;
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Basileia (Suíça), no Museu das Culturas, tem 1 véu;
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Bruxelas (Bélgica), no Museu Real de Arte e História, tem 1 véu;
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Paris (França), no Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas, tem 1 véu;
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Milão (Itália), na Livraria Ambrosiana, tem 1 véu.