Marcelo Rubens Paiva: Eunice Paiva Ainda Está Aqui 01/03/2025

Marcelo Rubens Paiva: Eunice Paiva ainda está aqui – 01/03/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Alguém com Alzheimer morre aos poucos. Sua psique se evapora antes de o físico liquidificar. Por vezes, falávamos da minha mãe no pretérito, apesar de ela estar por perto, imóvel, numa cadeira de rodas. Por vezes, ela tinha lampejos de lucidez. Foi numa dessas, que reclamou: “Ainda estou cá”.

Sim, mãe, logo corrigíamos, sabemos disso, nos desculpe. Com a doença avançando, a morte se aproximando, as dores aumentando, as idas e vindas a hospitais, um sentimento devastador atingiu a todos, o que é oriundo, inevitável, crucial, de quando chegará o sota final, já que no descaso da vida ela aprontou mais uma.

Ela viu, mas não registrou, ou talvez tenha feito, os resultados da Percentagem Vernáculo da Verdade, a pena em 2014 pela Justiça do Rio de Janeiro dos torturadores de seu marido, a subida da extrema-direita, a repercussão do livro “Ainda Estou Cá”, a histerismo e polarização das eleições de 2018. Não viu cartazes pedindo o AI-5, ou pior, “Ustra vive”.

Carregava o fardo do Alzheimer há mais de quinze anos e morreu justamente no dia 13 de dezembro, nos cinquenta anos do AI-5. A grande satisfação foi ver no Jornal Vernáculo uma material de mais de dez minutos sobre ela, ouvir Heraldo Pereira, apresentador da GloboNews, expor que morria uma brasileira amorosa, lúcida e que sempre atendeu muito e respeitou a prelo, com só uma menção à data do AI-5.

No velório e enterro, surpresa: apareceram amigos de toda a vida, amigos das minhas irmãs, meus amigos. O Conjunto Acadêmicos do Ordinário Augusta compareceu em peso. Amigos roqueiros dos anos 1980 ajudaram a carregar o caixão. No enterro, eu me emocionei: “Mãe, você está sendo carregada por dois punks, dois pós-punks, um trotskista, petistas, tucanos, diletantes, poetas, boêmios e até por um palhaço dos Parlapatões”.

No cemitério do Araçá, na capital paulista, foi levada ao mausoléu dos Facciolla, uma casinha mediterrânea azul e branca que, da avenida Doutor Arnaldo, dá para ver o telhado e secção da frente —sempre que passo de ônibus ou sege, vejo e gesto. Foi enterrada com sua mãe, suas tias e tios, cujas plaquinhas indicavam a data da morte, mas não a do promanação. Eram parentes italianos que não sabiam o dia em que nasceram.

É para cá que quero ser trazido, quando morrer, avisei em cimalha e bom som. Cada nome, uma fotinho. A da minha mãe é uma em que ela sorri. Ao final, não poderia faltar: Eduardo Suplicy, o único político presente, cantou a pedidos “Blowin in the Wind”. Empostava a voz porquê se estivesse num comício. Pôs na letra toda a emoção que nem Bob Dylan tinha imaginado quando a compôs.

A missa de sétimo dia foi na capela modesta do Sion de Higienópolis, para quem ela, quando moçoila, fez campanha para receber verba para a compra de tijolos. Minha mãe era católica. Quando me via lendo sobre anarquismo, minha camiseta do Sex Pistols, ou lia os primeiros textos em que publiquei, para fanzines punks, perguntava se eu não acreditava em Cristo. Logo ela, neta do libertário italiano Pedro Donatti, que veio ao Brasil em fuga com duas filhas. Ela me mandava prestar atenção na moral cristã e me fez ler livros da teologia da libertação. Foi essa moral que seguiu e moldou a heroína brasileira que agora o mundo conhece.

Meses depois sua morte, sonhei com ela, não com Alzheimer, mas com a mãe com quem convivi intimamente nas décadas de 1980, 1990, aquela que virou conselheira e amiga. Estava feliz, realizada porquê advogada, com planos. Nas fotos da era, sempre aparece surpreendentemente sorrindo ou gargalhando. No sonho, me lembro de entrar no seu velho apartamento, com os móveis da minha puerícia, com o cheiro de sempre, a luz de sempre. Me lembro de entrar, vê-la, abraçá-la e expor: “Preciso tanto de você…”.

Na pandemia, um dos programas que eu fazia com meus dois filhos era visitar cemitérios. A quinze minutos a pé, visitávamos dois. Não foram ao enterro da vovó, mas conheceram seu túmulo. Corriam porquê se estivessem num parque. Examinavam outros túmulos, viam nomes, datas, fotos. Alfabetizavam-se lendo epitáfios. O cemitério do Araçá tem uma tranquilidade e um silêncio que eram bem-vindos naquela era.

Para Sebastião, o mais novo, a cruz era uma punhal. Perguntou se um dia vai morrer, se Jorge, seu melhor colega, também, e se eles podiam viver na casinha da vovó depois que morrerem, porque é “muito fofinha”.

Mas o nosso predilecto era o cemitério São Paulo. Estão lá o general Miguel Costa, comandante da Poste Prestes, combatentes mortos na Revolução Constitucionalista de 1932 e os estudantes símbolos do movimento. No mausoléu, incríveis esculturas de soldados com rifles e baionetas. Esculturas de Victor Brecheret, que está enterrado lá, num túmulo modesto, com a foto dele e de sua mulher. Ossos e caixões (caveiras, uma preocupação infantil) não são retirados. Viram pó, nos explicou um sepultureiro. “Caveira é coisa de cinema. Tudo esfarela.”

Em agosto pretérito, embarcamos nós três para Veneza, para a estreia do filme “Ainda Estou Cá”. A família toda nos encontrou em Veneza —minhas irmãs Veroca, Babiu e Nalu, os tios Avê e Daniel, os primos Chico e Juca, com seu marido Márcio, mais primos, amigos e agregados. Posteriormente cinco dias na Itália, fomos todos de volta a Paris, na moradia da Nalu. Estava dada a largada para a nomeada internacional da saga de Eunice e da assombro de todos.

“Ainda Estou Cá” estreou nos cinemas brasileiros exatamente no dia do promanação da dela, 7 de novembro, quando faria 95 anos. Virou um fenômeno. Fernanda Torres fez uma foto diante do túmulo dos Facciolla. Virou visitação pública —um pouco tremendo, mas compreensível.

Em 1966, minha família se mudou para o Rio de Janeiro depois que meu pai voltou do exílio. A moradia que alugara, aquela do filme, estava ainda em reforma e, porquê engenheiro, ele mesmo tocava a obra, que nunca acabava. Fiquei sozinho com meu pai no Hotel Glória, prédio enorme, clássico.

Não tinham começado as aulas. Eu passava o dia sozinho pelos corredores do hotel. À noite, dormia com meu pai, na grande leito de par. Via seu barrigão branco respirar. Era muito confortável deixar a cabeça nela. Subia e descia. Era lisa, branca, quente. Me sentia honrado e protegido por estar sozinho com ele.

Depois do susto do que aconteceu dois anos antes, sem poder trespassar, com seus amigos, numa embaixada em Brasília, de perder o incumbência de deputado federalista e de mudarmos de cidade repentinamente, e de escola, porquê em fuga, eu estava em tranquilidade ali com ele. Estava tudo imperturbado.

No hotel, todos já me conheciam, cuidavam de mim, eu tinha recta a manducar o que quisesse, passava horas na piscina. Certa tarde, entediado, vi um botão vermelho de emergência ao lado do elevador. A curiosidade foi mais poderoso. Apertei o botão, só para ouvir porquê era. Acontece que estourei o rebate do hotel e, por mais que eu apertasse de novo, ele não parava.

Corri em pânico de volta para o quarto e, cônscio de que fizera um pouco muito inverídico, me escondi debaixo da leito. Vi pela fresta da porta um corre-corre de hóspedes e funcionários. Achei que, por qualquer motivo, estavam detrás de mim. Sabiam que era eu, aquele garoto, que tinha feito a molecagem. Conseguiram desligar o rebate, e a calmaria voltou. Acabei dormindo ali, debaixo da leito, sobre o grosso carpete.

Que alegria me deu quando, muito mais tarde, vi meu pai ajoelhado, me olhando, me oferecendo os braços para trespassar debaixo dali. Estava com a roupa de trabalho ainda. Nem perguntou zero. Caímos junto na leito. Eu o abracei. O calor de seu corpo, sentir sua respiração, sua mão nas minhas costas, me deu a segurança de um escudo. Nunca me senti tão protegido na vida. Quero muito que meus filhos sintam o que senti nesse dia. Quero que sintam isso todos os dias.

Registrei tudo isso num livro novo. Não consigo evitar. Explorar a dor e a saudade escrevendo é compulsivo. Raconto do ex-boêmio do Ordinário Augusta que virou pai aos 50. Da separação, quando os filhos eram bebês. Das lembranças de porquê fui educado para aprender a ser pai e, eventualmente, mãe. De porquê galgar um isolamento social. De porquê, porquê a maioria dos artistas, sobreviver a um governo que considerava a cultura inimiga. O livro desse tempo, desse “novo normal”, em que dizíamos “ninguém larga a mãe de ninguém”, se chamará “O Novo Agora”. Mas poderia se invocar “Ainda Estão Cá”. Porque os ancestrais estão conosco. Sempre estarão.

Folha

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