Entre as músicas que são consideradas hinos do axé, pelo menos três ganharam o imaginário popular com a Margem Mel. “Prefixo de Verão”, “Baianidade Nagô” e “Crença e Fé” explodiram no prelúdios dos anos 1990, quando Márcia Short assumiu, ao lado de Robson Moraes, os vocais do grupo, já divulgado por ter participado de uma revolução no término da dez anterior.
Com as irmãs Janete e Jaciara Dantas, além do cantor Buk Jones, a Margem Mel foi uma das primeiras a incluir músicas dos blocos afro, neste caso o portanto emergente samba-reggae, no repertório que levavam a seus trios elétricos. A maior dessas canções —e talvez a mais potente de todo o Carnaval baiano— foi “Faraó (Potestade do Egito)”, símbolo desse encontro entre blocos afro e bandas de trio que é a força motriz do próprio axé.
Neste ano, Márcia Short e Robson Moraes reativaram a Margem Mel para comemorar seus 40 anos de existência, justamente no ano em que a axé music celebra seu próprio natalício de quatro décadas. Mas, diz a cantora, nem tudo é sarau nessa história. “O embranquecimento do axé não precisa ser dito, ele está aí”, afirma. “Se eu permanecer falando, parece que estou me referindo a pessoas, mas não é isso —é uma engrenagem.”
Ela fala sobre o já muito propalado processo de transformação do axé em indústria com força vernáculo, um movimento que veio escoltado da subida de rostos brancos porquê ícones do gênero. Seu exposição, ela esclarece, não é contra Ivete Sangalo, Daniela Mercury ou Bell Marques, que “merecem seu lugar na sombra, porque o sol está aí queimando todo mundo”, ela diz, mas “as oportunidades não foram as mesmas”.
A história de Márcia de certa forma espelha sua mensagem. Os blocos e as grandes bandas do Carnaval de Salvador funcionam porquê empresas, que contratam os artistas e comandam a folia e sua trilha sonora. Ela trabalhou na Margem Mel no auge do grupo, tendo gravado o clássico disco autointitulado de 1992. Tinha “carteira assinada, trouxa horária e percentuais”. “Três dos quatro álbuns que gravamos foram discos de ouro e nós sequer recebemos aquele quadro para botar na parede.”
Criada para embalar o Conjunto Mel em 1984, a Margem Mel contratou Márcia Short em 1989, depois de tapume de uma dez em que ela cantava em bandas de dança e bares. A artista também vendia acarajé com a família para se sustentar, mas largou as duas profissões quando nasceu seu rebento, Daniel. “Tive um rebento neurotípico, portanto ou eu voltava para o acarajé ou cuidava dele —as duas coisas, não dava. E também não tinha com quem deixá-lo para ir trovar.”
A cantora terminou o enlace e voltou a morar com a mãe, o que a permitiu participar da audição para entrar na margem. “Cheguei e já gravei uma música. Não sabia o que era aquilo, só estava cantando no microfone e depois ouvi minha voz amplificada. Fiquei louca. Não tinha letramento, conhecimento, só estava maluca para voar, realizar meu sonho, de alguma forma pertencer àquele universo”, diz.
Foi quando entrou de cabeça na agenda intensa de shows, viagens, participações em programas nacionais de televisão, puxada pelo hit de “Prefixo de Verão”, sucesso inteiro em 1990. “Essa exposição em mídia vernáculo me deu um respaldo que tenho até hoje, mas não me deu numerário, pelo contrário”, ela diz. “Tive um desgaste com a empresa certa vez porque queriam me remunerar em abadá. Imagine, uma cantora, mãe solo, vendendo abadá no shopping e na orla.”
Márcia Short sorri ao lembrar das sessões de estúdio, da geração de levadas e letras de canções em idas e vindas nos ônibus e da convívio com os músicos. Frequentadora assídua dos blocos afro, ela já tinha essa influência antes mesmo de esses estilos musicais ganharem a avenida. Eram esses estímulos criativos que a mantinham ativa na mais duradoura e bem-sucedida formação da Margem Mel, também uma das mais influentes da axé music até hoje.
“Mas tem uma hora que unicamente a satisfação artística não segura, né? As contas chegam. O próprio status de ser estrela da arte, da música, quem bancava era eu. Eu comprava minha roupa, meu figurino, pagava meu cabelo, minha maquiagem. Depois que eu saí, teve de tudo, mas enquanto eu estava lá, estive nem no Carnaval tinha um transporte.”
Em 1994, em seguida cinco anos avante da Margem Mel, ela tentou negociar um contrato mais vantajoso financeiramente com a empresa, com quem acabou rompendo, ao lado de Robson Moraes. Sem um congraçamento de rescisão, a dupla entrou na Justiça contra os empresários, que mantiveram a margem em atividade com outras formações ao longo dos anos —sem tanto sucesso.
Somente em 2023, em seguida décadas de disputa nos tribunais, a dupla conseguiu legalmente o recta de explorar comercialmente a marca da Margem Mel. Márcia conta que, há tapume de dez anos, o valor devido a eles pelos direitos trabalhistas não pagos já estava na vivenda dos R$ 6 milhões. “Porquê eles não tinham esse numerário, e zero que valesse isso nos nomes deles, propuseram fazer leilão da marca. Logo, em consenso, eu e Robson decidimos trabalhar essa marca.”
A dupla gravou um audiovisual com registro de um show em setembro do ano pretérito, na Valva Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, numa “catarse enorme de mexer com qualquer ser humano”, ela diz. Ela afirma que “não sabia que tinha ficado na memória e no coração” do público. “A gente fica tanto num lugar de resguardo que acaba passando vencido por algumas emoções que não se permite sentir, acha que não merece.”
Há duas memórias fundamentais de Carnaval para Márcia Short. A primeira, no auge da Margem Mel, quando passou em cima do trio pelo sítio onde antes vendia acarajé. E, depois, em curso solo, cantando de madrugada, quando “as pessoas estão exaustas e só tem quatro bêbados, cinco putas e dois cachorros” na rua.
Hoje, ela tenta levantar fundos para fazer um documentário sobre cantoras negras baianas que foram esquecidas pela história. Também pede um espaço mais privilegiado no Carnaval para os blocos afro, e quer jogar de novo os holofotes no ritmo criado no Olodum por Neguinho do Samba, porquê canta na música solo “Meu Samba Reggae”.
“Foi a baqueta de Neguinho do Samba que regeu tudo isso, né? Ele era meu camarada pessoal, fomos juntos para a trincheira muitas vezes, pedir que fosse providenciado alguns movimentos para que a gente tivesse qualquer recta. Foram muitos anos sem ter recta a zero. Sou testemunha de que neguinho morreu triste, desapontado e chateado com porquê as coisas aconteceram.”
Márcia Shot diz que conta sua história para que novas gerações não passem pelo que ela passou. “Foi uma jornada enxurro de nuances e percalços, mas não sou vítima de zero. Eu reagi, me mantive. Não foi fácil, mas eu cheguei.”