Um clima de melancolia paira sobre Provincetown. A vila litorânea no estado norte-americano de Massachusetts, considerada um dos principais destinos do turismo LGBTQIA+ no país, começa a se despedir do clima de euforia do verão e se prepara agora para a solitária baixa temporada.
É neste meio tempo entre uma estação e outra que se passa o drama “Maré Subida”, estreia do italiano Marco Calvani na direção de longas e estrelado por Marco Pigossi, marido do cineasta. O filme foi exibido no Festival do Rio, agora integra a seleção do Mix Brasil e é a comprovação de que o planeta brasílico tem força para seguir curso internacional.
Faz sentido que Calvani, também responsável do roteiro, tenha escolhido justamente esse período de entressafra para situar sua história. O brasílico Lourenço, personagem de Pigossi, vive uma espécie de purgatório privado entre o término de uma lanço da vida e o primícias de um tanto que parece nem saber o que é. Longe de seu país — relembrado com a verso saudosista de Oswald de Andrade que abre o filme, mas também pelas chamadas de vídeo invasivas da mãe religiosa e conservadora, que remetem ao seu pretérito enrustido em Itu, interno paulista —, ele sente o dilema de voltar à terreno natal ou encontrar uma forma de se manter no lugar onde encontrou pela primeira vez a liberdade de ser quem realmente é. Mesmo que essa liberdade ainda seja, de certa forma, comedida.
É dentro de um cenário distante do já publicado — e idealizado — sonho americano que a história evolui. Imigrante sem documentos para continuar morando nos Estados Unidos, Lourenço vive na vivenda dos fundos de Scott, papel de Bill Irwin, mistura de companheiro com figura paterna. Mas ele ainda se encontra à margem, sem expectativas nem possibilidades concretas para o porvir. No Brasil, ele era contador. Na novidade verdade, sua formação não parece impressionar ninguém. Em sua construção, Calvani opta por um desenvolvimento deliberadamente lento, convidando o testemunha a submergir na quietude que define aquele cotidiano.
Desde as primeiras cenas, o diretor opta por uma linguagem embasada nos olhares e gestos de seu protagonista, que vive no modo automático, quase que esperando por um milagre. A contemplação e o silêncio permeiam boa segmento de “Maré Subida”, e é nesse lugar que Pigossi garante uma atuação sólida e emocionante, além de praticamente toda falada em inglês.
A escolha por takes próximos ao rosto do ator reforça essa sensação de introspecção, revelando expressões e microrreações que transmitem mais do que qualquer diálogo. Em uma bela versão, o ator explora os sentimentos reprimidos do personagem, transmitindo uma espécie de espera silenciosa e desesperançada, em que exclusivamente o silêncio parece compreendê-lo.
Além do silêncio, o mar também é um envolvente no qual Lourenço consegue encontrar certa tranquilidade. Calvani evita qualquer tipo de glamourização, optando por uma câmera que respeita o espaço do personagem, destacando suas hesitações e a anfibologia de seus sentimentos. Nome mais publicado internacionalmente do elenco, Marisa Tomei aparece a partir da metade do filme e sua personagem, Miriam, garante um ar surpreendentemente hospitaleiro. Irwin traz uma profundidade sutil que contrasta com o peso das incertezas que Lourenço carrega. Ambos abraçam o protagonista de diferentes formas e são uma espécie de âncora em meio a um envolvente ora amigável, ora tremendo.
A figura que mais abala as estruturas do protagonista é Maurice, interpretado por James Brand, rapaz que conhece numa de suas andanças pela praia deserta. A aproximação entre os dois é ligeiro, e marca o início de uma paixão que vai levantar a maré da vida de Lourenço e tirar algumas coisas do lugar. Varão preto que cresceu convivendo com o preconceito não exclusivamente quanto sua orientação sexual, mas também por conta da raça, ele acrescenta um olhar realista para a sociedade norte-americana.
Essa exiguidade de idealização também vale para as cenas de sexo em “Maré Subida”, filmadas com crueza. Elas têm uma naturalidade que espelha a verdade de Lourenço —há, inclusive, uma cena íntima logo no início do filme que coloca o protagonista num lugar de invasão e inércia.
Mesmo com algumas sequências mais festivas em baladas ou nos encontros com a turma de amigos de Maurice, há um ar pé-no-chão que se encaixa muito muito naquela atmosfera de término de verão, quando o auge já passou e o que restam são exclusivamente memórias e a instabilidade de não saber o que o porvir suplente.
