Maria Bethânia era uma moçoilo em Santo Amaro, no interno da Bahia, quando pegou pedaços de papelão e escreveu nele com carvão uma frase que havia lido —”de todas as coisas certas, a mais certa é a incerteza”. José Teles Veloso, seu pai, achou que a mensagem era avançada demais para sua idade e não demorou a tirar o escrito da cabeceira do quarto da filha.
“Quando moçoilo, me sentia feliz e completamente livre —de pensamento, de atitude, de escolha de palavras”, diz Bethânia. “Eu encontrava, por eventualidade ou nos muitos livros que meu pai e minha mana Mabel tinham em morada, frases que eu decorava e gostava de expressar. Eram coisas maduras, muito supra da idade que eu tinha.”
É através da relação com a família, com a cidade natal e com as palavras que a Ocupação Maria Bethânia tenta desvendar uma artista que está mais ligada ao mistério das dúvidas do que à nitidez das certezas. A mostra que abre nesta quarta-feira (13) no Itaú Cultural, em São Paulo, dispensa materiais de valor histórico, a trajetória cronológica de sua curso, capas de discos ou vídeos de performances musicais para buscar Bethânia no universo que a muro e alimenta.
Na ocupação, as palavras dela ou de autores com quem dialoga são projetadas no solo sob fotografias. Antes de ganharem vida própria quando emanadas de seu corpo em forma de esquina —uma vez que nos dois shows que ela fez na capital paulista, no último término de semana, encerrando a turnê “Fevereiros”—, elas despertam na artista o que ela labareda de “uma vigor impossível de reprimir”.
É o que Bethânia sentiu quando entrou em contato com a obra de Fernando Pessoa e Clarice Lispector. “Adoro o jeito que eles escrevem, entendo e sinto daquela maneira. Compreendo daquele jeito. Minha psique é parecida com o jeito deles, com a psique deles, pelo menos do que consigo captar. Mas palato de ler gente novidade. Recebo muitos livros, de muita gente principiante. Às vezes não me toma totalmente, mas de qualquer modo palato de ler aquilo. É novo.”
Além de Pessoa e Lispector, Bethânia surge na ocupação através das palavras de gente uma vez que Waly Salomão, Sophia de Mello Breyner, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Arnaldo Antunes e o irmão Caetano Veloso.
Também com a exibição de frases bordadas, uma prática que ela adquiriu durante a pandemia para aplacar o marasmo e a tristeza que tomaram sua psique inquieta de artista.
“São dois pedacinhos de tecido com alguns pontos”, ela diz. “São pensamentos, coisas que vinham na minha cabeça —e que eu, bordando muito mal, imprimi ali na naquele tecido. Era uma maneira realmente dissemelhante de sentença. Isso me agrada. Palato de me expressar. Sou uma tradutor, isso é a minha vida.”
Mostrar Bethânia através dos bordados, de certa forma um desdobramento da rapariga que escrevia com carvão, foi um libido de Bia Lessa, diretora de shows da cantora e uma das curadoras da ocupação. “Quando você vai fazer alguma coisa sobre ela, pensar no óbvio é empobrecedor”, ela diz. “Betânia é o oposto do óbvio. Enquanto o mundo todo vai para um lado, ela vai para o outro.”
Foi o que a baiana fez quando, nos anos 1960, se deslocou do meio da tropicália, movimento encabeçado por Caetano e os amigos Gilberto Gil e Gal Costa, para buscar um caminho próprio. É uma sentença que passa pela tradicional da música popular brasileira, mas também pela convívio comunitária de Santo Amaro, de sua conexão com a natureza, com as palavras e com a fé.
Na ocupação, Bethânia surge em imagens preparando um caruru com a mãe, Dona Canô, reunida com a família ou participando de festas religiosas e populares de sua cidade. “É uma família que entende a teoria de colaboração, uma coisa que me lembra o modo de vida dos indígenas”, diz Lessa. “A comida é feita em caldeirões, é o tempo inteiro essa alegria. Não tem tanto a noção de público e privado.”
O sagrado e o temporal, uma vez que é próprio do sincretismo religioso e das festas baianas ligadas às religiões de matriz africana, se misturam nas imagens —um pouco que se reflete na obra de Bethânia. “São coisas coladas”, diz Lessa. “Na veras, o sagrado está na sarau tanto quanto o contrário. Não há zero mais sagrado que uma alegria louca, um paixão louco. Quer coisa mais sagrada que uma trepada maravilhosa? É um êxtase, você atinge Deus.”
Muito ligada à mãe de santo Mãe Menininha do Gantois, do candomblé, Bethânia diz que não sobe ao palco sem “botar o pensamento muito firme e dirigido” em Iansã —também chamada de Oyá, a nume dos raios e tempestades—, e Oxum —rainha das águas doces, ligada à maternidade—, seus dois orixás. Sua atuação magnética nos shows, ela diz, não passa pela incorporação de entidades.
“Não tenho incorporação, isso me foi dito logo de faceta quando conheci Mãe Menininha, minha ialorixá”, diz Bethânia. “Ela me disse que Iansã, meu orixá de cabeça feita, não é de chegar, não é de raspar, não é de dançar. ‘Compreenda, absorva e sinta ela’. Isso é um ensinamento, uma explicação que serve para tudo.”
Sua performance no palco, afirma a cantora, é teatral, mas tem magia. “Essa magia não significa incorporação. Sou lúcida e responsável, sei de absolutamente tudo que está acontecendo enquanto estou em cena —de mim, dos meus músicos, da luz, do som, da plateia, do envolvente que me muro. Um rumor, uma coisa que esteja fora do caminho que sinto ser aquele, eu estranho. É meu modo de conduzir minha emoção, meu ofício de tradutor, para chegar até as pessoas.”
A ocupação também tenta transcrever Bethânia pela natureza, com ventiladores e espelhos d’chuva. No segundo caminhar, ela é exibida em um vídeo no estilo mosaico, espalhado por 44 monitores e com muro de 1h30 de duração. Segundo Bia Lessa, é “uma vez que se fosse um diálogo” entre ela, pessoas de sua família e os mais importantes autores que interpreta.
“Não é falando sobre ela, tipo ‘poxa, a Bethânia, uma vez que ela é extraordinária’”, diz a curadora. “Eles falam sobre a relevância da vocábulo, uma vez que é o processo criativo, o que é a vida, a morte, a inspiração. Às vezes tem ela cantando, porque é uma vez que ela lida com a vocábulo. Quando Bethânia vai gerar um show, o que importa primeiro não é a venustidade da melodia, mas o oração. Muitas vezes, tem músicas extraordinárias que ela não coloca porque não é aquilo que quer expressar naquele momento.”
A mostra que agora sai do papel é um libido velho do Itaú Cultural, diz Galiana Brasil, gerente de programação artística do espaço. “Já foi tentado lá detrás e ela não teve interesse. Quis o universo, o rumo, e ela própria, que fosse nesse momento”, afirma. “E acho que ela representa muito nesse momento de reconstrução do país.”
Para as curadoras, a ocupação de Bethânia na avenida Paulista, um dos centros econômicos mais representativos do Brasil, é também uma forma de mostrar outras realidades possíveis num cenário de individualismo e capitalismo avançado. “Nesse mundo tão chinfrim, tão de quinta categoria, as pessoas vão entrar num universo onde os valores são outros —não é o quantia, não é a bolsa Louis Vuitton”, diz Lessa.
É um universo centrado numa teoria de Brasil que transborda pela vocábulo cantada por Bethânia, uma teoria de urbanidade enraizada em ensinamentos ancestrais —indígenas e africanos— e praticada através do encontro, da fé e da sarau. De todas as coisas certas, para Bethânia, a mais certa é que ela não vive sem trovar o Brasil —ou, uma vez que ela diz, o “o Brasil de dentro, real, sem artifícios, sem mentiras, sem se misturar com poder ou com quantia”.
“Sinto com paixão profundo um povo de uma nobreza fora do generalidade, de uma sabedoria e ao mesmo tempo consciência de suas dificuldades e suas belezas. Se eu vivesse um milhão de anos, todos eles seriam encantados pelo Brasil. Palato de trovar e escolher minhas palavras para esse Brasil. Não posso viver sem isso.”