Das esculturas de cerâmica parecem se levantar bichos com um toque de fantasia, figuras míticas, personagens de ilustração entusiasmado. Nas paredes terracota, pinturas em tons terrosos, uma arte quase rupestre entre máscaras com feições atormentadas.
São todas obras de Julia Isidrez e Maria Lira Marques, que passaram uma temporada em Novidade York, exposta na feira Independent 20th Century, com expografia de Lucas Jimeno, e agora estão à vista na galeria Gomide&Co, em São Paulo.
Mais de 2.000 quilômetros separam as duas artistas, unidas pela mesma visão de mundo encantada. Marques é de Araçuaí, cidade no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, uma das regiões mais carentes do país. Já Isidrez vem de Itá, conhecida porquê “capital das cerâmicas”, região do Chaco paraguaio com potente influência de povos originários.
Elas não se conheciam até as vésperas da introdução da exposição na capital paulista —eufóricas, se cumprimentaram pela primeira vez na galeria, à vista dos jornalistas que acompanhavam o evento, em março.
Ambas se inspiram na natureza, mas criam conforme a imaginação —Isidrez cria híbridos de cerâmica a partir de formas arredondadas e densas, enquanto Marques pinta em planos chapados, sem profundidade.
Os seres são misteriosos e cativantes, monstros que não despertam temor, mas afeto. Em “Mundo de Julia Forma de Pera”, da paraguaia, uma das figuras se parece com um dinossauro, com escamas de um tricerátops. Já “Oveja Poncheja” tem espinhos que surgem porquê uma mão ensejo pronta para fechar o punho. Em um dos lados, está um rosto ovino e patas.
Mesmo os animais mais “normais” de Isidrez têm seu toque autoral –”Anfora Yacaré” é gravado por lagartos em alto-relevo, mas com um par de patas a mais que o normal. Existem ainda os mais extraordinários, porquê “Grito de Libertad”, figuras zoomorfa com sua imensa boca escancarada.
Enquanto as figuras da paraguaia já foram consideradas porquê “fofas” por críticos de arte, as máscaras de cerâmica de Marques têm um peso dissemelhante.
São faces alongadas de pessoas com progénie africana e indígena —”tenho um pouco dos dois”, diz a artista—, com bocas entreabertas e expressões de desespero. Lágrimas escorrem dos olhos, voltados para inferior.
A artista, entretanto, se dedica à pintura posteriormente uma tendinite. As telas são feitas com pigmentos naturais e os traços simplificados ganham a textura da terreno, remetendo às obras milenares das grutas da Serra da Capivara, no sertão piauiense.
“A natureza é riquíssima. Basta a gente observar. Cá no Vale do Jequitinhonha, o pessoal pinta a cerâmica com as cores da terreno. Quando vi os trabalhos da dona Izabel [Mendes da Cunha, criadora das bonecas-moringa da região], comecei a pesquisar também as terras, a coletar e colocar em vidros. Eu tenho terras da cor mais branca, que chega a doer a vista, vários tons de amarelo, roxo, goiaba”, diz a mineira.
Ela trabalha desde os anos 1990 no que labareda de “Meus Bichos do Sertão”. “Meus porque são da minha cabeça. Eles vivem na minha mente”, afirma. Alguns parecem humanos, mas com formas distorcidas, porquê extremidades alongadas, porquê as de um sapo. À direita, na mesma tela, está uma promiscuidade de pássaro e peixe, com antenas de um extraterrestre, um corpo roliço e barbatanas.
Fora as máscaras, na sua estátua chamam a atenção figuras e personagens de seu cotidiano, feitas em miniatura. São denúncias da desigualdade e vexame vivenciadas na sua região.
Tanto Isidrez quanto Marques aprenderam a moldar o barro com suas mães, que repassaram a tradição. As técnicas centenárias se devem à influência indígena –notadamente dos povos guarani, na região do Chaco– e africana, no Vale do Jequitinhonha.
“Minha bisavó fazia cântaros ou, em guarani, cambuquí. Dela foi para minha avó, até que chegou à minha mãe. Nessa era, já existiam as geladeiras e garrafas térmicas para ter chuva fresca”, diz Isidrez. “Portanto minha mãe passou a fazer da cerâmica uma obra de arte.”
Hoje, Araçuaí e Itá são conhecidas porquê polos de arte no transacção sítio. Lá, o barro é copioso: ainda hoje, Isidrez procura sua matéria-prima a três quilômetros de sua moradia.
A ceramista começou a moldar o barro com a mãe, Juana Marta Rodas. A dupla foi invenção pelo arquiteto Carlos Colombino e, quando Isidrez tinha 17 anos, venceram o prêmio holandês Prince Claus por uma de suas obras. “Foi [Colombino] quem disse à minha mãe: ‘Juana Marta, você não é artesã, é artista'”, diz, emocionada.
Décadas depois, Isidrez expôs na Bienal de Veneza do ano pretérito, sob o tema “Estrangeiros por Toda a Secção”, com curadoria de Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp. A artista levou peças de sua mãe, assim porquê obras suas feitas a partir dos desenhos de Juana Marta.
A paraguaia fundou, em sua cidade, a Morada Museu Juana Marta Rodas, onde dá aulas de cerâmica. “Sou uma pessoa quase de terceira idade e não tenho filhos, mas quero deixar uma legado de arte, às pessoas que queiram aprender”, conta.
Marques também se destaca na vida cultural de sua comunidade. Fundadora do Museu de Araçuaí, a mineira despontou no cenário devido ao Coral Trovadores do Vale, que surgiu a partir da movimentação de Francisco Van Der Poel, o Frei Chico, padre holandês que se instalou na região e dedicou boa secção de sua vida ao registro de sua cultura.
A dupla gravou mais de 250 fitas com canções típicas do vale, reproduzidas pelo coral até hoje. Em fevereiro, Marques se apresentou com o grupo na Chapada Diamantina, no meio da Bahia, cantando o repertório que narra a vivência de seu povo.
Tanto Araçuaí quanto Itá se transformaram em centros onde a cultura sítio, centenária, se reinventa ao longo das décadas, a partir da atuação decisiva de Isidrez e Marques e da repercussão de suas obras.
Marques teve a primeira selecta de suas obras publicada, no ano pretérito, pela Galeria Gomide&Co. O livro, além de retrospectiva, é uma biografia que ilumina o mundo interno da artista. Já Isidrez, com sua tradição de cerâmica pré-colombiana, põe a arte paraguaia no planta global. Depois de São Paulo, suas obras participaram da Bienal do Mercosul, em Porto Feliz, e estão previstas para serem expostas em San Francisco e Londres.