Marieta Severo não está nem aí para o dia em que completa 60 anos de curso. Só sabe que foi em qualquer momento dos meses que passaram ou dos que estão por vir. Não é apegada à data de zero —”esqueço aniversários, não sou das comemorações”, ela diz. É mais pé no solo, uma apreciadora da vida real, do palpável.
Muito dissemelhante da sua novidade personagem, a espirituosa Leda, do filme “Cancro com Ascendente em Virgem”. Enxurrada de superstições, e religioso a vários símbolos religiosos, Leda é é mãe de Clara, papel de Suzana Pires, que descobre ter cancro de peito.
Numa mistura de comédia e drama, o longa narra porquê mulheres muito diferentes seguem rumo a uma mesma invenção: a de que o autoamor, somado à cumplicidade, pode salvar vidas. A protagonista não sabe pedir ajuda. Sozinha, tenta ser mãe presente, boa profissional, devastar nas redes sociais, dar uns beijos e estar sempre formosa. Mas esquece de cuidar de si —e o cancro a faz lembrar.
“A gente se acostumou a ser muito cobrada, a se sentir culpada. A mulher está sempre girando um pratinho cá, outro ali, e mais um. É difícil. Sempre fui feminista, e meu espacinho está cá, mas também tive de decorrer de um lado para o outro para lastrar os pratos”, diz Marieta. “Não esqueço de um dia em que cheguei em morada, cansada das gravações, e minha filha me disse ‘não tem pipoca’. Meu Deus, além de fazer cinema, televisão, dar conta de um teatro, não posso deixar faltar a pipoca?”
Mas foi-se o tempo em que ela se cobrava. Diz que só exige de estar muito consigo mesma, com a família, e distribuindo afeto. “A vantagem da vetustez é essa.”
O ímpeto para gravar “Cancro com Ascendente em Virgem” veio da sua vida pessoal. Fora da ficção, ela é mãe de Silvia Buarque, do himeneu com Chico Buarque, que também teve cancro de peito. “Passei pelo mesmo que minha personagem, mas sem precisar falar com Buda, Orixá ou Nossa Senhora Aparecida. Recorri a todas as forças que estão por aí e que nem sei quais são.”
Lançado nesta quinta-feira, o filme vem no rastro de outro longa que Marieta topou porque a fazia lembrar da família. No ano pretérito ela lançou “Domingo à Noite”, em que interpreta a mulher de um idoso com Alzheimer, num triste paralelo à sua verdade —durante as gravações, Marieta cuidava do marido Aderbal Freire Rebento, um dos grandes diretores do teatro brasílico, que teve um acidente vascular cerebral e morreu. “Aquele filme foi uma ousadia da minha segmento”, diz ela.
Ir do humor à tristeza, velejar entre gêneros, pular dos palcos para a frente das câmeras, se despedir de um formato para entrar em outro. É o que Marieta fez a vida inteira. Da hilária “A Grande Família”, que tomou sua vida por quase 15 anos, foi para a sensual romance “Verdades Secretas”, antes de se entregar ao drama no cinema com “A Voz do Silêncio” e “Noites de Alface”.
“Cancro com Ascendente em Virgem” marca seu retorno à comédia, gênero que ela diz ser fundamental ao país. “O brasílico se expressa por meio do deboche, do humor, da ironia, da farra, da piada. Faz segmento da nossa psique. Fui criada vendo chanchada. Meus ídolos eram Zezé Motta, Oscarito, Grande Otelo.”
Atriz por natureza, Marieta começou no teatro com 18 anos, e hoje celebra, aos 78, um dos momentos mais importantes do cinema vernáculo. Sorri ao falar de “Ainda Estou Cá”, que levou Fernanda Torres ao Oscar e ganhou a primeira estatueta ao país, de melhor filme internacional, mas lembra também de “Auto da Compadecida 2”, comédia vista por mais de 4 milhões de pessoas.
Marieta foi mãe de Fernanda Torres no filme “Com Licença, Eu Vou à Luta”, de 1986, quando a colega não cogitaria a teoria de virar estrela em Hollywood, paparicada por Demi Moore a Ariana Grande. “Fiquei porquê o Brasil todo. Não só na torcida, mas encantada com o jeito dela, que dominou aquelas situações com perdão e sabedoria.”
A sarau foi boa, mas agora é hora de arrumar o salão. Marieta celebra, mas diz que um Oscar não resolve os problemas do audiovisual. “Toda essa glória tem que gerar leis para solidificar a indústria. São vários os segmentos que ficaram sem atendimento nesses últimos anos”, ela afirma sobre a gestão de Jair Bolsonaro, que dissolveu o Ministério da Cultura e atacou a Ancine, a Sucursal Pátrio do Cinema.
À Folha, há cinco anos, Marieta afirmou que o Brasil vivia com Bolsonaro um período catastrófico, louco, medieval. Agora, com Lula na Presidência, diz que já foi-se o tempo de o governo se reorganizar. “Há coisas muito positivas, e agora temos mecanismos mais efetivos, com a volta da Ancine, mas nem tudo está azeitado o suficiente. Queremos medidas mais efetivas, recursos, e atenção ao debate sobre a regularização das plataformas de streaming.”
Ela luta também pelo Teatro Poeira, que ergueu com ajuda da atriz Andréa Beltrão há 20 anos. O espaço, que virou referência na arte cênica carioca, foi forçado a fechar as portas na pandemia, reabriu em 2022, e hoje sofre para captar patrocínio. “O verba que mantém ele de pé sai do meu bolso e do da comadre. E vai ficando cada vez mais difícil.”
Beltrão e Marieta são amigas antigas. Trabalharam juntas no teatro em “A Estrela do Lar”, de 1989, anos depois na Mundo, em “A Grande Família”, e mais recentemente na romance “Um Lugar ao Sol”, de 2021.
Beltrão define a colega porquê uma “construtora de afetos, de pessoas interessantes”. Diz que é injusto tentar pinçar destaques nos seus 60 anos de labuta. “Não dá para ir vivendo a vida nomeando seus grandes feitos. Ela não é uma estrategista da própria trajetória. E é por isso que Marieta é tão rica, porque deixa a vida levar.”
Para o porvir, Marieta quer mais cinema que teatro e televisão. Nem cogita encarar a rotina de gravações de uma romance —na Mundo, as filmagens ocorrem de segunda a sábado, por horas ao dia, durante meses. Aliás, ela mal vê os folhetins da TV ocasião. Diz que deve dar uma olhada na novidade “Vale Tudo”, mas que não teria paciência para seguir seus quase 200 capítulos.
“Não me vejo mais decorando texto de romance por um ano inteiro. Sei o quanto isso é custoso. Mas é prazeroso também, evidente, a televisão me deu facilidade com os movimentos de câmera, e isso me ajuda no cinema”. Rosane Svartman, diretora de “Cancro com Ascendente Virgem”, atesta a atriz. “É uma pessoa muito ocasião ao jogo de cenas. Ela domina o set, mas traz frescor.”
Sessenta anos depois, Marieta Severo continua enxurro de pujança. Tem quatro filmes para lançar, e quer voltar ao teatro em breve. Diz que se atrai cada vez mais pela teoria de fazer streaming. “Lembro daquela moça enxurro de instabilidade, achando que não tinha talento, se afundando em angústia”, diz. “Só tenho vontade de pedir para ela permanecer calma, manifestar que ela vai inferir seu lugar.”