10 de novembro. Richard Wagner é difícil. Quem encena “O Ouro do Reno”, a primeira das quatro óperas da tetralogia “O Argola do Nibelungo”, tem de ter talento e intimidade com o teatro lírico. E quem quer ver a ela precisa gastar os tubos para chegar a uma orquestra, um elenco e um maestro à profundidade da arte totalidade de Wagner.
Portanto, foi um programa que se faz uma vez na vida e outra na morte: ver “O Ouro do Reno” no Teatro alla Scala, de Milão, a mais elevada das torres de marfim. Tudo foi fabuloso: a queda livre da música no despenhadeiro dos mitos; a lúgubre intensidade de cenários e figurinos; a magnitude do vozerio. Cada euro do ingresso valeu a pena.
Fechada a cortinado, um uníssono de exalo pôs a plateia de pé. Aí, no orgasmo da glorificação, chamaram ao palco Christa Mayer, a contralto que fez o papel de Erda. Má teoria. Uma vaia bombástica abalou o Scala. Os “insubmisso!” vibrantes deram lugar a dós de peito wagnerianos: “Vergogna!”. Nunca vi zero igual. Nem no Parque Antarctica.
Perguntei ao vizinho de frisa o que acontecera. “Não gostaram dela”, respondeu. Na lajeada do teatro, um grupinho de cabeças brancas detalhou: a moça cantara reles, e muito mal —alguma coisa que os brasileiros nem notaram os milaneses não perdoaram.
Dia 12 de novembro. A rapariga de 16 anos e o moço de 18 se abraçam no Museu Arqueológico de Mântua. São os Amantes de Valdaro, o lugarejo onde foram achados, em 2007. Eles estão enlaçados desde o Neolítico, há 6.000 anos, quando foram enterrados juntos. O parelha de esqueletos dá um choque de ternura, traz à mente o último verso de “Um Túmulo de Arundel”, de Philip Larkin: “O paixão nos sobreviverá”.
Dia 14 de novembro. O paixão sobrevive também na sala de banquetes do Palazzo Te. O marquês de Mântua encomendou os afrescos do prédio a Giulio Romano, o pupilo predileto de Rafael. Artista à margem do cânone, tido por pornógrafo pelo papa Clemente 7º, Romano pintou a cena que hipnotiza quem visitante o Palazzo, “Júpiter seduz Olímpia”.
Lânguida, Olímpia acolhe entre as coxas a vistosa ereção de Júpiter, que, meio encapotado de serpente, acaricia seu o rosto. São espiados por Felipe 2º, rei da Macedônia e marido de Olímpia —ou seja, além de voyeur, corno. Júpiter manda uma águia furar-lhe os olhos.
Desde o século 16 fofoqueiros espalham que Júpiter tem as feições do marquês de Mântua; e Olímpia é idêntica à sua amante. Vai saber.
Dia 15 de novembro. Do outro lado da fronteira, no Tirol austríaco, fica a minúscula Längenfeld, onde em 1830 acharam uma natividade de chuva quente. Ela pertence agora ao Aqua Dome, um balneário termal com saunas, duchas e piscinas de todo tipo: ferventes, salinas, gélidas, rochosas ou ladrilhadas.
Uma piscina memorável repousa no nascimento esplêndido de um pequeno vale entre os Alpes e as Dolomitas. Miniluzes cravejam seu fundo anil, são diamantes a espelhar as estrelas no veludo preto do firmamento. O corpo entorpece, periga se dissolver no cálido aconchego de um útero côncavo.
As saunas —a vapor, finlandesas ou de pedra— são mistas, e na maioria a nudez é obrigatória. Enquanto a pluralidade dos corpos é infinita, seu apelo erótico é nulo. Não fiquei pelado porque tive, uma vez que se diz no Scala, vergonha.
Dia 17 de novembro. Outra ópera, dessa vez em Innsbruck: “Falstaff”, a última de Giuseppe Verdi. O libreto é um remendo de cenas das peças de Shakespeare em que o obeso e rabugento John Falstaff gargalha e importuna, enche o caco e pisa na jaca, agoniza, estrebucha e morre fora de cena.
É a única ópera cômica de Verdi, mas não tem perdão. Falstaff, lépido e furta-cor, ficou fosco, claudica. Em ressarcimento, a música é deleitável —e convencional. Os aplausos foram protocolares e ninguém urrou “Schande!” (vergonha em boche, acho).
Dia 18 de novembro. Vejo em Trento “La Grande Ambizione”, filme de ficção que enaltece Enrico Berlinguer, secretário-geral do Partido Comunista Italiano nos anos 1970. Foi quando defendeu o “compromisso histórico”, a federação do PCI com a direita palatável para mudar a Itália a fundo.
O malogro do PCI e Berlinguer foi totalidade, constatação que o filme evita. Prefere cultivar a nostalgia a enfrentar a veras, mesmo que passada. É por isso que só havia velhos no cinema.
No Brasil, a esquerda não é nostálgica porque o compromisso histórico está em vigor. O PT se aliou à direita dita civilizada para reformar a pátria —que mas continua atolada na pobreza e na exploração. Ao transpor do cinema, o sol se põe e o Brasil entristece a noite que cai sobre Trento.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul aquém.