Martinho da Vila tem 86 anos e achava que já tinha se emérito. “Já fiz bastante coisa, né?”, diz o grande cantor e compositor, um dos nomes mais importantes do samba e da música brasileira. “Eu vivi o auge da indústria do disco, quando os estúdios viviam cheios, todo mundo trabalhava, era uma maravilha. Hoje o pessoal não grava mais um LP, só grava uma música para lançar, depois outra”.
Um invitação de Paulo Junqueiro, presidente da atual gravadora de Martinho, a Sony Music, fez o artista mudar de teoria. E assim nasceu “Violões e Cavaquinhos”, seu novo disco. O LP —sim, um LP completo— tem 12 faixas, sendo a maioria de regravações de clássicos do repertório de Martinho e quatro inéditas.
O disco tem várias participações especiais: as filhas de Martinho, Alegria Ferreira e Mart’nália, cantam com o pai, assim porquê Preta Gil e o rapper L7nnon —lê-se Lennon.
“Eu não conhecia o L7nnon”, diz Martinho. “Quando me sugeriram regravar ‘Canta Canta, Minha Gente’ com um rapper, eu logo pensei no pessoal que eu conheço, porquê o Marcelo D2 e o Gabriel o Pensador. Mas sugeriram ele, e tenho de expressar que adorei o rostro. Ele é uma figura, supertalentoso e deu um variegado bacana à música”. L7nnon adicionou frases à letra clássica de Martinho, num encontro do samba com o rap.
Uma vez que o nome diz, “Violões e Cavaquinhos” é um disco de arranjos minimalistas, restritos, basicamente, aos dois instrumentos. “Sempre quis fazer um disco assim, só com violão e cavaquinho”, diz Martinho.
O time de instrumentistas reunidos para a gravação é de primeira: Rafael dos Anjos, Carlinhos Sete Cordas, Gabriel de Aquino, Ana Costa, Cláudio Jorge e Wellington Monteiro se alternam nos violões, enquanto Pretinho da Serrinha, Fernando Brandão, Alaan Monteiro, Nilza Roble, Alceu Maia e Wanderson Martins gravaram os cavaquinhos.
Martinho diz que, depois que ouviu as versões finais, achou que faltava alguma coisa e gravou, ele próprio, a percussão do disco, com tamborins e pandeiros.
Entre as faixas inéditas, duas se destacam: “Coisa de Preto” é uma parceria de Martinho com Chico César, numa letra que lista, de forma poética, o que os dois compositores chamam de “coisas de preto”: “Manducar feijoeiro com angu/ tomar cachaça com caju”, “dar rabo de arraia na capoeira”.
Outra inédita formosa é “Sempre Bela”, em que a letra de Martinho mistura influências lusófonas (“Eu paladar imenso de você”) e indígenas (“Cunhatã/ sempre jovem cunhã”).
Martinho se diz muito feliz com o disco e com a período atual de sua vida. “Estou tranquilo, paladar de permanecer em mansão ouvindo música e jogando xadrez”, afirma ele, agora também responsável da autobiografia “Martinho da Vida”, que discutirá em junho durante a Feira do Livro, em São Paulo.
Assistiu ao show de Madonna e é só elogios à cantora: “Foi muito bacana o que ela disse sobre o Rio de Janeiro, que estava emocionada em se apresentar numa cidade tão linda. Acho que a Madonna fez certinho”.
O artista se emociona ao lembrar os ícones do samba que teve a chance de saber em seis décadas de curso. Fala com carinho de nomes porquê Nelson Cavaquinho, Cartola e Ismael Silva.
“Eu era um compositor de escola de samba [a Unidos de Vila Isabel] e sempre me inspirei nos compositores das grandes escolas. Adorava gente porquê Silas de Oliveira, Walter Rosa, Padeirinho da Mangueira e Jorge Zagaia”.
Martinho se diz, até hoje, surpreso com a profundidade poética e formosura de canções de compositores de pouca instrução acadêmica, porquê Nelson Cavaquinho e Cartola. “O Nelson era uma figura. Tocava violão com dois dedos, e o violão dele tinha uma afinação tão estranha que ninguém conseguia tocar nele, só o próprio Nelson.”
Sobre Cartola, diz: “Era um artista intuitivo, sem instrução acadêmica, mas fez músicas de uma riqueza melódica fora de série, que impressionavam até grandes músicos eruditos”.
Martinho foi comemorado em uma letra do próprio Cartola, “Cadeira Vazia”, uma ode ao colega de Cartola, o grande Noel Rosa. A letra diz: “Eu quisera olvidar o pretérito/ eu quisera, mas sou obrigado/ a lembrar o grande Noe/ ainda resta a cadeira vazia/ da escola de filosofia/no bairro de Vila Isabel/ professores trilham seu caminho/ dentre eles destaco Martinho”.
“É verdade”, diz Martinho, “mas Cartola termina o samba dizendo: ‘Mas nem todos, nenhum, nem ninguém/ a você se chegou/ eu também agora prossigo/ esse grande trabalho/ não sei se o baralho/ deu trunfos demais pra você/ nem cartas poucas para mim’. Realmente, Cartola tem razão, Noel era inigualável. E imaginar que um gênio desses morreu aos 26 anos. Olha a quantidade de músicas que ele deixou num espaço tão limitado de vida.”