“Matrix”, lançado no Brasil em 21 de maio de 1999, sempre suscitou debates para muito além do cinema. O filme questiona o que denominamos verdade, provocando o testemunha a pensar se é, ou não, livre. Há, também, leituras da extrema direita que extraem dele dois símbolos principais: as pílulas vermelha e azul.
A pílula vermelha, oferecida por Morpheus a Neo em uma das cenas mais conhecidas da história, representa a saída de um estado de aprisionamento. O protagonista tem duas opções: tomar a pílula azul e ajustar em mansão, sem lembrar de zero, ou tomar a vermelha e deslindar o que é a matrix, uma verdade simulada por inteligências artificiais que mantém os humanos sob controle, porquê baterias.
Exemplos de cooptação desses símbolos não faltam. Em 2020, Abraham Weintraub, ex-ministro da instrução do governo Bolsonaro, e Elon Musk, bilionário possessor do X, usaram a metáfora das irmãs Wachowski para tutorar o negacionismo na Covid-19. Tomar a pílula vermelha, no caso, era sinônimo de perceber uma suposta farsa da pandemia que, só cá, matou mais de 700 milénio pessoas.
O movimento redpill se apropria de “Matrix” de forma mais estruturante, menos episódica, e é constituído por homens que ressentem os avanços dos direitos femininos. Para os redpillados, “saíram da matrix” aqueles que enxergam a dominação do mundo pelas mulheres, que controlariam o “mercado sexual” do qual estão excluídos.
Pesquisadoras, Bruna Amato e Raquel de Barros publicaram, no início deste ano, cláusula intitulado “De ‘Matrix’ a Suzano”. Nele, discorrem sobre movimentos masculinistas, porquê redpills e incels —{sigla} para celibatários involuntários.
Segundo elas, as primeiras comunidades de incels não tinham caráter misógino, eram grupos de desajustados buscando ajuda mútua. A misoginia e os discursos de ódio aparecem quando uma dessas comunidades bane as mulheres e cruza seus usuários com o 4chan, “famoso reduto de extremistas, racistas, antissemitas, lgbtfóbicos e toda sorte de homens preconceituosos”, escrevem.
O 4chan é uma página que se baseia na postagem de imagens e textos, um fórum de discussão anônimo, exceto para os administradores, dividido em subfóruns com regras e conteúdos específicos.
Amato e Barros explicam. “Esse varão branco, heterossexual, que está no topo da masmorra cevar, mas não faz sexo, muito antes dele encontrar um exposição que o faça compreender e questionar porquê o patriarcado impõe normas de socialização e hierarquização aos próprios homens, vai concordar a retórica de que a mídia, o Estado, a sociedade, os governos ou qualquer sistema, na verdade, privilegia as mulheres e que nós somos as verdadeiras inimigas.”
Uma tradução progressista, que se baseia em um dos lemas do longa, “escolha é uma ilusão”, aponta para a falsa liberdade do rotação publicidade-consumo. “Matrix” pode ser lido porquê uma sátira à sociedade de consumo e à exploração numulário; troca-se, somente, humanos por máquinas.
Isabel Jungk, professora da PUC-SP, preocupa-se com a mensagem publicitária de que tudo está ao alcance das pessoas, porquê se não houvesse limites financeiros, por exemplo. “Esse capitalismo é mais cruel do ponto de vista físico e psíquico. Há um marketing da performance, do desempenho.”
O simulacro –noção do filósofo gálico Jean Baudrillard, que inspirou o filme– é, na visão dela, uma saturação de signos distorcendo a verdade, ao ponto de acreditarmos nessas representações. “É a mente que está na matrix.”
Para as diretoras Lilly e Lana Wachowski, “Matrix” é uma metáfora trans. Ambas assumiram a transgeneridade em 2012 e 2016, respectivamente. Havia uma personagem trans no roteiro original, Switch, interpretada por Belinda McClory, que teria gêneros diferentes dentro e fora da matrix. Isso não permaneceu, segundo Keanu Reeves, por resistência do estúdio.
A volubilidade do elenco, muito primeiro do seu tempo, e o mote transformador do filme apontam para o mesmo termo. Ainda assim, resta a incerteza: “Matrix” é um filme vago, fácil de ser cooptado, ou generoso, uma vez que rende inúmeros debates e interpretações?
A disputa seguirá oportunidade por, pelo menos, mais 25 anos. Um novo filme foi anunciado, o quinto da franquia, com direção de Drew Goddard, de “O Sigilo da Palhoça” (2011), sem previsão de estreia, por enquanto.