“Me edita que eu falo muito”, diz Marcelo Médici logo que chega, pontualmente, para esta entrevista. O ator e dramaturgo —título que ele titubeia em admitir, mas que, enfim, é o nome que se dá a quem escreve peças de teatro— está em edital com o solilóquio “Cada Um Com Seus Pobrema”. A temporada curtíssima é no palco do teatro Procópio Ferreira, até o dia 26 deste mês.
Se eu fosse você, corria lá na porta do teatro e dava um jeito de entrar. Não é toda hora que uma pessoa sozinha no palco consegue fazer tanta gente rir tanto, e de um jeito tão catártico.
A peça foi remontada para comemorar os 20 anos de sua existência. Lançada em 2004, “Cada Um”, porquê Marcelo labareda seu trabalho mais marcante, foi gerado a partir de personagens que o ator criou para o humorístico “Terça Insana”, um projeto que surgiu em 2001, teoria da atriz e comediante Grace Gianoukas, em que vários atores faziam esquetes individuais de até dez minutos, e que foi um sucesso estrondoso.
“Foram uns amigos meus que insistiram para eu fazer um espetáculo solo, isso nem passava pela minha cabeça. Eu já tinha alguns personagens, porquê o Mico Leão Dourado e o Sanderson, o corintiano, pelo qual ganhei um prêmio no Multishow em 1998, mas nunca me considerei um dramaturgo”, diz Médici.
“Aí, milénio crises, porque tinha que produzir o resto todo e dar um jeito de juntar os personagens, que não têm zero a ver um com o outro. Portanto, junto com o Ricardo Rathsam, que é coautor e dirige o espetáculo, decidi que a melhor saída seria falar da minha verdade, que é a vida de um ator de teatro tentando sobreviver do seu trabalho.”
Só que não estamos falando de um ator normal cá, um mero trabalhador do ofício de interpretar personagens, tarefa muito superior e dificílima, imagino. Mas, neste caso específico, nascente é um gênio da comédia e do improviso. Que criou um espetáculo em que o tal ator de teatro que tenta sobreviver do seu trabalho está apresentando uma montagem músico de “Hamlet” na língua do P. Sim, você leu notório. “Hamlet”. Músico. Na língua do P.
Mas o ator/personagem trava em cena, não consegue continuar a peça, muito no final do solilóquio fundamental do clássico de Shakespeare, aquele que começa com “ser ou não ser, eis a questão”. Devastado, decide fazer um sincerão com a plateia e passa a recontar as dificuldades de viver daquela arte. E aí começa o louco desfile de personagens inacreditáveis, cada um com uma voz, um jeito de corpo, uma maneira de se movimentar e um raciocínio dissemelhante.
Além dos já citados Sanderson e o Mico Leão Dourado, Marcelo encarna uma faxineira recém-chegada do Recife, que foge de um trabalho em um apartamento em Higienópolis depois de um encontro sinistro no elevador do prédio em que uma vizinha lhe roga uma praga.
Tem o irmão surfista e cabeça oca do ator, que sem fazer nenhum esforço para isso acaba vencendo um reality show e virando planeta de Hollywood. A Smurfete é até difícil de sintetizar, de tão absurda que é a situação. Minha preferida, a Mãe Jatira, uma médium que se comunica com os espíritos dos personagens da Disney, já virou clássico no YouTube.
“O jeito de falar da Mãe Jatira é uma homenagem a uma das maiores atrizes que a gente já teve, a Miriam Muniz [1931-2004]. Ela sabia que eu a imitava e ela achava ótimo, pedia pra eu fazer pra ela ver quando a gente se encontrava e dizia: ‘Que bom que você está me imitando muito, fiquei muito feliz’”, conta o ator, fazendo a voz da atriz que virou sua personagem.
“Mas a estrela desta temporada é a menos politicamente correta de todos, a tia Penha, uma apresentadora infantil que odeia crianças, fala coisas horríveis para a plateia”, conta o tradutor, que se inspirou em Xuxa para nascente trecho. “A Xuxa me disse que já viu umas cenas da tia Penha no YouTube e adorou, morreu de rir”, diz. “E é ela que sacode mais a plateia hoje em dia, não sei o porquê.”
“Cada Um Com Seus Pobrema” sempre foi uma peça muito engraçada, desde que foi lançada. Não é por outro motivo que marcou a curso de Marcelo Médici para sempre, lançou o nome dele porquê um comediante luzente, que depois disso fez milénio outros trabalhos e continua fazendo. É porquê “Like a Prayer”, da Madonna, ou “Yesterday”, dos Beatles. A obra fundamental que mostra, de uma forma concisa, tudo de que aquele artista é capaz.
Mas um pouco aconteceu com o mundo entre 2004 e 2024, e o que já era muito engraçado passou a ser catártico. Marcelo Médici não faz só seu público rir, e, sim, ter ataques de riso, porquê só costuma suceder de maneira espontânea. Sabe quando você dá um fora que não podia dar de jeito nenhum? Ou quando alguém comete uma gafe que revela um pouco que não podia ser revelado? A sensação que dá, vendo a peça hoje em dia, é que aquilo não devia estar acontecendo, muito menos ao vivo.
Não é que seja um humor 100% politicamente incorreto, não é esse o caso. Mas também não é que Marcelo deixe de se malparar. “Houve uma mudança de comportamento muito grande nesses vinte últimos anos, e a comédia é sempre muito punida nesses momentos”, afirma.
“As pessoas perderam um pouco a capacidade de elaboração do que é a comédia. A comédia pode fazer críticas, pode invocar a atenção para um problema, pode ser ácida, pode ser irônica. Isso não quer manifestar que não estamos respeitando as mudanças sociais ou debochando de tudo o tempo todo.”
Marcelo conta que, a cada vez que remonta “Cada Um”, passa por uma “sessão de tortura”, porquê ele labareda o ritual de se testemunhar, em vídeo. “Eu odeio testemunhar o vídeo da peça”, ele diz, sério. E até isso é engraçado.
“Eu tomo esse desvelo para ver se um pouco ficou horrivelmente ofensivo, e minha surpresa é sempre porquê não tenho que mudar quase zero do original”, afirma. “Eu sou em prol de a gente refletir sobre o que faz e se atualizar, mas também vejo muita hipocrisia nessa vaga, sabe? Por WhatsApp e em outras redes sociais é todo mundo muito mais liberal, mas no teatro tem essa convenção de que não pode ofender ninguém. Não concordo com isso, a gente tem o responsabilidade de não deixar essa coisa se estabilizar”, afirma.
“É impossível fazer comédia e atender a todas as pautas ao mesmo tempo.” Uma tarifa, convenção, ou sei lá o nome que se dá para o terror de grande secção do público de teatro, o ator que mexe com a plateia, é uma que Marcelo ignora solenemente. Na segunda metade do espetáculo, com o público já frouxo na cadeira de tanto rir, eis que acontece o momento de pânico.
Na pele da vidente Mãe Jatira, Marcelo pede que a luz da plateia seja acesa e desce do palco. Fala com algumas pessoas, faz perguntas e comentários e, portanto, escolhe alguém para subir no palco e fazer uma participação privativo. “Eu morro se tiver em uma peça e o ator descer do palco”, confessa o próprio.
“Mas essa é uma tradição do Teatro de Revista, que sempre existiu. E eu sigo algumas regras fundamentais, por exemplo, nunca toco em ninguém e nunca forço alguém a participar”, diz ele. “E eu fico observando as pessoas do palco, vejo quem está mais receptivo. Às vezes, tem gente adorando, mas que eu percebo que não vai gostar da interação e reverência isso”, promete ele.
Pergunto se tem qualquer truque para deixar evidente para o ator que você não está a término da graçola, por exemplo desviar o olhar na hora em que ele desce do palco. “Desviar o olhar é a maior roubada, você só vai atrair o ator”, ri o desgramado.
“Mas eu vou dar cá a dica de um milhão, que é muito simples”, conta. “Basta cruzar os braços. Eu nunca li zero sobre isso, mas aprendi isso ao longo desses 20 anos. É uma linguagem corporal muito efetiva. Comigo é reservado, ninguém vai ser abordado de braços cruzados.”
E foi observando seu público que Marcelo Médici acabou tomando horror de uma colega de profissão. “Quando eu estreei no Rio, em 2006, estava fazendo a romance ‘Belíssima’, na TV Orbe, portanto quase toda noite tinha gente famosa na plateia, acabei me acostumando com isso”, lembra.
“Uma noite, olhei para a plateia e tinha uma atriz me olhando ‘assim’”, conta, fazendo uma faceta de tédio integral, com a mão no queixo. “Ela foi para entender do que se tratava aquele hype, mas não achou zero engraçado e não fez a mínima questão de encobrir”, conta. “No final, ela foi falar com o produtor do espetáculo e disse: ‘Por que você está produzindo essa peça?’”, lembra Médici.
“Odeio essa mulher até hoje. É uma ótima atriz, do primeiro time, mas eu odeio ela.” Daí, né, evidente, quando acabou a entrevista, fui apurar quem era a sujeita. Ele contou, mas pediu off. E não se quebra off. Portanto, lamento, mas essa é uma informação que vou ter que levar para o túmulo. Não necessariamente o meu.