Francis Ford Coppola não pode enregelar o tempo num estalar de dedos, uma vez que faz Cesar Catilina, protagonista de “Megalópolis”. Se pudesse, 40 dos seus 85 anos não teriam voado diante de seus olhos, dos primeiros esboços ao lançamento desse longa-metragem que pode ser tanto sua aposta mais radical uma vez que seu fiasco mais retumbante.
Nem só o tempo escorre pelas suas mãos. Sem nenhum grande estúdio para bancar sua audácia, Coppola vendeu uma fatia de suas vinícolas, que o sustentam há décadas, para bancar os US$ 140 milhões gastos nessa ficção científica épica que estreia nos cinemas nesta quinta-feira.
“É loucura não produzir o filme mais maravilhoso que você pode imaginar”, diz Coppola. “Você pode se dar muito ou fracassar, pode morrer e não saber o que acham de seus trabalhos”, afirma, se comparando, sem singeleza, a Georges Bizet, responsável de “Carmen”, uma das óperas mais famosas do mundo.
Tranquilo, ele conversa com os repórteres no hotel Fasano, em São Paulo, de camisa colorida, calça social e com meias de estampas diferentes. Mal parece falar de seu projeto mais aguardado, que encerra a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, onde é homenageado com o prêmio Leon Cakoff.
Vencedor de cinco troféus no Oscar, diretor de “O Poderoso Chefão”, hoje unânime uma vez que um dos melhores filmes de todos os tempos, e “Apocalypse Now” —uma das produções mais caóticas da história, com estouro de orçamento, tempestades tropicais e até o infarto de seu ator principal—, Coppola tem uma longa relação de paixão e ódio com Hollywood.
Secção da geração de cineastas que reconduziu a indústria americana à estrada do triunfo na dez de 1970, ele nunca escondeu seu insatisfação com a submissão financeira e as interferências criativas dos estúdios.
Ainda que os US$ 145 milhões de “Apocalypse Now” tenham oferecido um retorno de meio bilhão de dólares, a má nomeada estava feita. Com sua gana de malparar tudo pela arte, Coppola aprendeu a fazer seu pé-de-meia no ramo dos vinhos e da hotelaria enquanto convivia com grandes sucessos e fracassos ainda maiores com a American Zoetrope, produtora que fundou com George Lucas há 55 anos.
Três anos depois de rever o horror na Guerra do Vietnã, o diretor apostou numa ousada e também milionária história de paixão em Las Vegas, nos Estados Unidos. “O Fundo do Coração”, que virou “cult”, é hoje mais lembrado pelas dívidas que Francis Ford Coppola só quitaria em seguida dez anos e sete longas menos lembrados, com o estouro de “Drácula de Bram Stoker”, em 1992.
Àquela profundeza, já se dizia saturado daquele mundo. As megaproduções que o consagraram no establishment hollywoodiano anos antes eram, para ele, sobretudo um meio para se destinar a “Megalópolis”, do qual nunca se esqueceu, entre diversas formações de elenco e rascunhos do roteiro.
Se o objecto é negócios, os estúdios parecem ter tido razão de temer uma novidade bancarrota. Até a última semana, “Megalópolis” somou exclusivamente US$ 12 milhões nas bilheterias internacionais, em seguida uma estreia de US$ 4 milhões nos Estados Unidos, meses depois de ter dividido a sátira no Festival de Cannes, em maio.
“A bilheteria não tem zero a ver com zero. Quando [Hollywood] faz um filme, eles controlam os trilhos do trem. Controlam [a plataforma de avaliações] Rotten Tomatoes, que nota você vai lucrar”, diz Coppola. “Não consigo entender uma vez que uma obra de arte pode ser medida em estrelas. Quantas você daria ao Taj Mahal em relação ao Parthenon?”
Mas, ou por outra, histórias dos bastidores conturbados pintaram o veterano uma vez que dominador, impaciente, avesso a conversas. Mais graves foram as acusações de que Coppola teria adoptado e beijado jovens figurantes de surpresa durante gravações para as fazer “entrar no clima” de uma sarau, segundo uma natividade ouvida pelo jornal The Guardian.
Os rumores foram reforçados por dois vídeos vazados pela revista Variety, em julho, e por uma ação de uma das figurantes por assédio contra o diretor. Em resposta, Coppola, que nega as acusações, processou o veículo e pede US$ 15 milhões em danos.
Quando ele foi questionado pelos repórteres sobre isso, a assessora do diretor tentou interromper a entrevista —mas, positivo, o cineasta pediu calma com um gesto. “Eu mesmo posso falar. Não vou comentar isso”, ele disse, sorrindo.
“Depois de ‘O Varão que Fazia Chover’, em 1997, eu saí da indústria. Não fiz filmes profissionais, mas experimentos, muito baratos, para saber mais sobre atuação”, afirma. Foram dez anos longe de novos longas até “Velha Juventude”, de 2007, seguido de “Tetro”, de 2009, e “Virgínia”, de 2011. No meio-tempo, também aproveitou para remontar algumas de suas obras, uma vez que “O Poderoso Chefão 3”, em 2020, e o próprio “Virgínia”, no ano pretérito.
Neste último, um terror de baixíssimo orçamento, ele refletia sobre o que é ser um artista e sobre o traumatismo da morte de seu fruto Gian-Carlo, num acidente de paquete.
Já o novo filme reflete a morte da sua mulher, a quem a obra é dedicada. Eleanor Coppola, morta em abril, aos 87 anos, se casou com o cineasta em 1963, documentou os bastidores de vários dos seus filmes e deu à luz também Roman Coppola e Sofia Coppola, hoje ambos bem-sucedidos na indústria.
Esse estilo tardio, que Coppola labareda de seus “filmes estudantis”, com uma estética mais amadora, desconstroem grandes temas da sua obra, uma vez que a família, o tempo e a labareda criativa. “Megalópolis” é resultado desses anos de estágio, segundo ele.
Na trama, Cesar Catilina, papel de Adam Driver, visionário do design e da arquitetura, vencedor de um Nobel pela geração de um material mágico, o “megalon”, tenta implantar uma comunidade utópica em Novidade Roma, uma vez que é conhecida a Novidade York aos moldes do Poderio Romano deste mundo, um coração do capitalismo tão próspero uma vez que decadente.
Nessa fábula enxurro de efeitos especiais, com tintas de sátira e referências ao seio da cultura ocidental, o gênio incompreendido luta por sua teoria com Julia, papel de Nathalie Emmanuel, filha do seu principal opositor, o prefeito Cicero, vivido por Giancarlo Esposito.
Catilina considera Novidade Roma uma cultura agonizante, mergulhada em consumismo e ganância. Para ele, uma novidade sociedade é provável com a reforma da cidade pelo “megalon”, nem que para isso tenha de destruir a moradia dos mais pobres.
O núcleo familiar, um tanto fundamental nas sagas de Coppola, cá está aos frangalhos numa complexa rede de nepotismo, sexo e traição que remetem às tragédias mais sanguinárias de Shakespeare, com uma boa ração da ficção científica de H.G. Wells.
O personagem de Driver desafia ainda seu primo Clodio Pulcher, vivido por Shia LaBeouf, um populista à voga de Donald Trump. Apesar de o filme aproximar a história de duas civilizações, Coppola não sabe prever o resultado das eleições americanas. “Só espero que a nossa democracia continue. Porque, se não, a opção é um ditador, ou rei, uma vez que em Roma.”
“Sou avô e bisavô e senhoril não exclusivamente meus filhos, mas todas as crianças do mundo. E milhares estão morrendo, crianças que seriam nossos próximos Beethoven e Arquimedes”, diz. “Ninguém pergunta a opinião dos jovens, mas eles herdarão o que tem sido feito pelos atuais políticos.”
Ambos utopistas românticos, serão Coppola e Cesar Catilina tão diferentes assim? “Eu tenho, sim, o poder de parar o tempo, uma vez que todos os artistas”, diz, contrariando o que a idade impõe a ele.
“Isso acontece desde que a humanidade começou a divertir com as crianças, o período mais criativo que vivenciamos”, diz, lembrando que as primeiras imagens criadas por humanos são mãos estampadas nas paredes de cavernas. “Provamos, ao longo da história, que somos mais criativos quando brincamos.” Em privativo, se nenhum grande estúdio está definindo as regras do jogo.
Ao final da conversa, Coppola faz a pergunta que tem repetido a todos os jornalistas. “Vocês têm filhos? Eles são a melhor coisa do mundo.” Ingênuo, dirão alguns. Mas é esse o princípio e o término de “Megalópolis”. “Somos todos únicos. Isso é um milagre.”