Por anos a fio, as pessoas só chegavam ao pé do ouvido de Mel Lisboa para expressar: “mas você está igualzinha a ela!”. As pessoas lembravam do sucesso do músico “Rita Lee Mora ao Lado”, em que a atriz, de 42 anos, interpretara, entre 2014 e 2016, a roqueira-mor do Brasil. Com o fenômeno de bilheteria, a cantora e compositora achou perdão da folia e, já debilitada pelo cancro no pulmão que a vitimaria há quase um ano, pediu mais uma temporada da peça.
Acontece que, passada uma dezena, a própria Rita escreveria um livro para descrever a sua história, o que exigiria de Lisboa um espetáculo inédito. Por isso, é chegada a hora da atriz pôr os óculos redondinhos e permanecer ruivíssima novamente. “Rita Lee – Uma Autobiografia Músico” estreia na semana que vem no Teatro Porto, na região médio da capital paulista, com todos os ingressos esgotados —em breve, a produção vai anunciar novas sessões.
“Eu queria ser a Rita Lee, queria ser ainda mais parecida com ela, ter o mesmo deboche e a mesma irreverência”, diz Lisboa, tomando um cafezinho, no pausa de um tentativa. “Sinto uma responsabilidade maior sem a presença da Rita, mas também sinto muito ela não estar cá para ver a peça.”
Embora a história seja a mesma, os diretores Marcio Macena e Débora Dubois espelham agora as características da autobiografia, lançada há oito anos —o primeiro músico se inspirava num outro livro, escrito por Henrique Bartsch.
Na novidade montagem, a atriz tem um papel de narradora, próprio de quem conta a sua vida na primeira pessoa do um. O roda temporal compreende as quase oito décadas de existência da artista, começando pelos primeiros anos de sua vida, na lar da Vila Mariana, até a sua aposentadoria dos palcos, em 2012.
Na ocasião, Rita foi detida, durante um show em Aracaju, Sergipe, por reclamar contra os policiais que abordavam os fãs, procurando apreender drogas. Ao longo da curso, seu ímpeto para revolucionar os costumes se uniu a uma estética mutante, atada à vanguarda. Nos anos 1960, sua figura feminina rompeu barreiras ao ser protagonista do processo de modernização da música brasileira —dos Mutantes até o Tutti-Frutti, passando pela adesão à tropicália.
A dramaturgia de “Rita Lee – Uma Autobiografia Músico” comporta a moral e a estética da personagem. Lisboa, com botas prateadas na fundura dos joelhos, entoa a música “Reza” ao lado dos nove atores do elenco, que também cantam e dançam para espantar a caretice, num cenário de dois níveis, ornado por um telão, onde são projetadas imagens de registro.
A cena lembra o incidente em que Rita foi presa, aos 28 anos, quando a polícia invadiu o seu apartamento e apreendeu alguns gramas de maconha. Em outra passagem, Rita é rodeada por artífices da tropicália e, sentada num sofá, ouve Gal Costa trovar “Baby”. Ao todo, são mais de 30 canções apresentadas no músico, a maioria escrita pela compositora. “Estou quase o dia inteiro cuidando da minha voz”, afirma a mezzo-soprano. “Nunca foi fácil para mim, mas qualquer pessoa é capaz de fazer qualquer coisa desde que se dedique e estude.”
Lisboa diz que sempre ouviu Rita, mas que só entendeu a dimensão da cantora, quando a interpretou no primeiro músico. Rita conheceu Lisboa nos ensaios e, durante a temporada, viu a peça, na mesma noite em que Ney Matogrosso estava na plateia. Desde logo, Rita e Lisboa conviveram por um perceptível período, mas a amizade foi atrapalhada pela pandemia e pela doença da roqueira. “Sempre tive susto de invadir seu espaço, ela já estava reclusa”, diz.
A atriz atribui o fenômeno de bilheteria ao trabalho minusioso de pesquisa. “A peça furou a bolha de quem sempre vai ao teatro, que é uma arte que tem o tamanho de uma sala de espetáculos”, ela afirma. “É bárbaro uma pessoa transpor de lar para ver uma peça, mas isso não tem o alcance de uma romance. O teatro depende de vários fatores, a pessoa precisa estar naquela cidade, naquela hora e precisa ter numerário.”
Uma vez que Rita, Lisboa se firmou na cena teatral paulistana —ela acaba de concluir uma temporada de “Misery”, de Stephen King, no Tuca. Sua curso, porém, sempre esteve atrelada aos trabalhos no audiovisual.
Nos anos 2000, Lisboa debutou uma vez que atriz, na Orbe, com a minissérie “Presença de Anita”, participando, tempos depois, da romance “Desejos de Mulher”. Na estação, ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Gramado, pelo filme “Sonhos e Desejos”, do diretor Marcelo Santiago.
Na dezena seguinte, trabalhou em novelas bíblicas da Record, uma vez que “Sansão e Dalila” e “Os Dez Mandamentos”. Lisboa minimiza as diferenças entre as duas emissoras, lembrando que os profissionais fazem segmento da mesma indústria e transitam nas produções dos dois canais.
É, de todo modo, curioso ela ter estado envolvida em tramas bíblicas, antes de viver Rita Lee, a iconoclastia em pessoa. “Isso que é lícito na profissão, a gente brinca de ser tudo”, diz ela. “Havia um estudo nas novelas, vinham estudiosos que nos ensinavam uma vez que era a vida num período tão distante.”
Há cinco anos, ela ainda esteve na série “Coisa Mais Linda”, da Netflix, interpretando a jornalista Thereza. Para tanto, ela repetiu a fórmula do estudo intenso da personagem e pôde constatar o machismo, típico das redações daquela estação. Embora novos trabalhos tenham surgido entre os dois musicais, a personagem nunca foi esquecida pela atriz.
Atendendo a outros pedidos de Rita, Lisboa gravou a versão em áudio das duas autobiografias. Sem dúvidas, é uma dramaturgia muito específica, na carência de um palco ou de uma câmera. As vidas de Rita e de Lisboa parecem entrelaçadas. “Tem muita gente que comenta sobre o meu trabalho vivendo Rita Lee, sem nunca ter visto a peça”, afirma.