Miguel gomes persegue o deslumbramento em 'grand tour' 20/04/2025

Miguel Gomes persegue o deslumbramento em ‘Grand Tour’ – 20/04/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Velejar está no sangue português, mas, ao contrário de alguns ascendentes, Miguel Gomes diz não ter encontrado ou desvelado zero ao fazer seu “Grand Tour”. Antes, queria mostrar e gerar —gestos que, para ele, nunca estão desligados da vivência.

Logo, para redigir o roteiro de “Grand Tour”, filme que chega à Mubi em seguida vencer o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes do ano pretérito, o próprio Gomes teve de pisar por onde passariam os personagens do longa, inspirado no livro “Um Gentleman na Ásia”, do britânico Somerset Maugham.

“Eu não posso filmar nem no pretérito, nem no porvir, só o hoje”, diz Gomes. “Me propus o repto de fazer um relato de viagem e coabitar isso com o lado romanesco da história de um par, o que passa pelo filme de aventuras, pela comédia e termina num registro trágico.”

Dá-se aí a primeira bifurcação do trabalho: por um lado, há um documentário de paisagens atuais do Leste Asiático, do Mianmar até a China, passando pelo Vietnã, Filipinas e Japão, em cenas nas quais podem conviver uma floresta de bambus habitada por pandas com um balé de motonetas numa grande cidade ou com uma roda gigante impulsionada manualmente por um grupo de meninos.

Do outro lado, entremeado na montagem, há o fio narrativo ficcional desse mesmo trajectória, mas em 1918, quando Edward Abbot, um funcionário do Predomínio Britânico na Birmânia vivido por Gonçalo Waddington, entre em pânico e decide fugir da sua prometida Molly, vivida por Crista Alfaiate, que está chegando da Europa para se casarem. De modo que ela, romântica e teimosa, passa meses a procurá-lo, de cidade em cidade, enquanto o rapaz —entre a fraqueza e uma má premonição— se esquiva sem parar.

Nesses momentos, com as cenas gravadas em estúdio, “Grand Tour” se descola do real para trabalhar paisagens imaginárias —isto é, coloniais— comuns à literatura europeia do século 19 e à Hollywood dos anos 1930 e 1940, quando as telonas ainda exibiam casais caucasianos aos tapas e beijos com o extremo Oriente ao fundo.

“É impossível irmos para estúdio e não pensar no [Josef von] Sternberg e nessa Ásia inventada pelo cinema. Eu queria mourejar com esse imaginário, mas não chegar aos mesmos resultados. O que não quer expressar que não acho ‘O Expresso de Xanghai’ uma obra-prima, zero reacionária”, diz Gomes, se referindo ao clássico de 1932 com Marlene Dietrich. “É uma incrível obra sobre a relação entre homens e mulheres, muito avançada para o seu tempo.”

Mas durante a curso do filme, Gomes se surpreendeu com as reações aos seus jogos ficcionais. “Falei com jornalistas ingleses, e não houve quem comentasse sobre orientalismo. Para eles, o grave que eu tinha feito era, sendo português, ter posto personagens ingleses a falar em português”, afirma o diretor, às risadas. “Para eles é quase uma variação de um blackface.”

É uma abordagem que, sobretudo aos lusofalantes, pontua a jornada com o humor pessoal de Gomes. Para quem já viu seus filmes anteriores, porquê “As Milénio e uma Noites”, “Tabu” ou “Aquele Querido Mês de Agosto”, não será estranho ver monges japoneses com cestos nas cabeças falando a língua de Camões, pouco depois de uma cena num bar filipino, onde um varão se embriaga cantando “My Way”.

Na maioria em preto e branco, essas imagens costuram aos poucos uma certa simetria —por exemplo, os monges Fuke eram errantes, circulavam livremente entre as fronteiras, porquê pretende Edward em sua jornada, enquanto o clássico de Frank Sinatra ficou marcado nas Filipinas por desencadear uma série de assassinatos em karaokês do país, nos anos 2000.

Mas Gomes, que escreveu o roteiro a partir das cenas documentais, não pôde fazer todos os registros que queria in loco. Duas semanas antes do previsto, prestes a embarcar para Xangai, a Covid estourou e tiveram de voltar para Lisboa. O trabalho foi retomado meses depois, com cinegrafistas chineses comandados remotamente pelo português.

“A teoria de mandar equipes de cinema para lugares afastados de onde viviam é alguma coisa que existe desde os primórdios do cinema. Não só na Europa e na América, mas também na União Soviética”, afirma o diretor. “Numa profundidade em que o mundo está velho, em que tudo parece já ter sido visto e desvelado, achei interessante republicar esse gesto e perceber se ainda era provável ter espaço para o esplendor”, diz Gomes.

Ainda de olho em além-mar, Gomes retomou “Selvajaria”, que idealizou ainda em 2015: adequar “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que diz ter sido impossível durante o governo de Jair Bolsonaro. “Vamos regularmente a Canudos, estamos selecionando atores canudenses e temos uma equipe preparada para filmar, composta por brasileiros, portugueses, italianos e franceses. As filmagens terão lugar no próximo ano.”

Folha

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