Desde outubro de 2022, quando completou 80 anos, Milton Promanação tem recebido constantes homenagens. Agora chega um dos tributos mais interessantes e carinhosos que o cantor poderia receber, um disco de material novo. Quem oferece esse presente é a cantora e contrabaixista americana Esperanza Spalding, grande nome do jazz contemporâneo.
Esse encontro músico tem história. Em 2010, ela convidou o brasílio para trovar “Apple Blossom” em seu álbum “Chamber Music Society”. No ano seguinte, eles dividiram o palco Sunset no Rock in Rio, num show recebido com muito exaltação pela plateia, apesar de alguma chuva e do persistente problema técnico que deixou o som muito insignificante durante praticamente toda a apresentação.
Gravado em várias sessões no Rio de Janeiro durante o ano pretérito, “Milton + Esperanza” é tecnicamente irretocável. Em seu trabalho anterior, “Songwrights Apothecary Lab”, produzido durante a pandemia, em 2021, ela tinha mostrado um grupo de músicas mais coeso e uniforme. Cá, Esperanza esbanja ousadias. As faixas inéditas são grandes exercícios jazzísticos, e as releituras que preenchem o disco são praticamente versões desconstruídas das originais.
O álbum tem várias vinhetas, porquê interlúdios. Faixas muito curtas que às vezes não passam de uma tímida instrumentação acompanhando conversas dela com Milton e outros músicos no estúdio. Nem sempre esse recurso dá claro, mas neste álbum funciona muito muito, porque transmite a ambientação de um encontro risonho, de amigos descontraídos com seus instrumentos.
Quanto a Milton, a voz divinal que encantou plateias em todo o mundo aparece em intensidades que variam muito de uma música para outra. É evidente a preocupação de Spalding ao dosar a participação de seu ídolo. Em alguns momentos, o vocal de Milton é preservado e se torna um componente de luxo em harmonizações de coro, para depois cintilar com força em solos.
Spalding contempla em várias músicas a teoria de começá-las com uma instrumentação mais simples e depois injetar peso no transcurso da tira. Esse recurso é copioso, até nas recriações de canções clássicas de Milton. Ótimo exemplo é “Cais”, iniciada com vocais guturais seguidos do quina rouco mas ainda cristalino do brasílio. Na segunda secção da melodia, ela entra cantando, em ótimo português, para que os dois fechem a música em um dueto belíssimo.
Muito poderoso também é “Outubro”, das antigas de Milton, lançada originalmente no álbum “Courage”, de 1969. Abre com uma introdução poderosa de contrabaixo antes que os dois parceiros desenvolvam talvez o dueto mais bonito do disco. Outro grande momento é a versão divertida de “A Day in the Life”, clássico dos Beatles que começa porquê uma melodia redonda com violões, bonitinha, para depois explodir em um som pesado. É a tira mais pop do álbum.
Em indemnização, as músicas menos palatáveis do repertório são aquelas em que Spalding convidou a Orquestra Ouro Preto e decidiu ousar bastante. Uma delas é um original da americana, “Wings for the Thought Bird”, e a outra é mais um clássico de Milton, “Morro Velho”. Ambas são muito interessantes, mas destoam um pouco do tom mais tranquilo do resto do álbum. Um tanto desencaixada também é a releitura de “Earth Song”, de Michael Jackson, com participação da cantora americana Dianne Reeves.
O trabalho tem mais convidados. Guinga comparece para uma curiosa versão de “Saci”, música que ele compôs para Milton. O original fica um tanto desconstruído, mas preserva espaço para o talento do brasílio no violão. Em “Saudade Dos Aviões Da Panair”, um punhado de amigos toca e canta na tira, a cantora e guitarrista inglesa Lianne La Havas e os brasileiros Maria Gadú, Tim Bernardes e Lula Galvão.
Carolina Shorter, viúva do lendário saxofonista Wayne Shorter, participa de uma versão de quase nove minutos de “When You Dream”, original do jazzista que foi um dos grandes mentores de Spalding . Mas a grande estrela entre os convidados é mesmo Paul Simon. Spalding o convidou para gravar com eles “Um Vento Passou”, que Milton compôs para o camarada americano. Com muito esforço, Simon arrisca os versos em português e não faz mal-parecido.
No balanço final, “Milton + Esperanza” é um disco com muitas nuances musicais, para ser degustado aos poucos. Para complementar, é verosímil procurar no YouTube a gravação que os dois fizeram no Rio, na morada de Milton, para o projeto Tiny Desk, da rádio pública americana NPR, que reúne apresentações intimistas de grandes nomes. Provavelmente será a única chance de ouvir esse material executado ao vivo.