A fileira subia a rua Augusta e dobrava a esquina com a parque Jaú. Quando a bilheteria abriu, bastaram poucos minutos para que os 279 ingressos do CineSesc se esgotassem em menos de meia hora. Dezenas de pessoas permaneciam no sítio na tentativa de conseguir qualquer ingresso extra.
Todo esse furor e burburinho não era para nenhum filme de Hollywood, tampouco para alguma comédia com elenco estrelado. A sessão esgotada foi para a estreia de “Minha Terreno Estrangeira”, novo filme de João Moreira Salles, dividindo a direção, pela primeira vez na curso, com Louise Botkay e com o Coletivo Lakapoy.
Formado por cineastas indígenas da etnia paiter suruí, o Coletivo Lakapoy tem pressa: “A Terreno está falando, não há mais tempo”, diz um dos fundadores Ubiratan Suruí. O filme tem dois protagonistas: Almir Suruí, tio de Ubiratan e cacique universal do povo paiter suruí, e Txai Suruí, prima de Ubiratan, filha de Almir, coordenadora da Associação de Resguardo Etnoambiental Kanindé e colunista desta Folha.
Almir foi candidato a deputado federalista por Rondônia, um dos estados mais bolsonaristas do país e Txai dedica a vida dela à luta pela floresta. O filme acompanha os dois durante os últimos 40 dias das eleições de 2022. Por isso a participação de Louise Botkay, com experiência no projeto “Vídeo nas Aldeias”, foi fundamental.
“Nossa equipe rodou oito milénio quilômetros. A teoria foi fazer muito projecto sequência, câmera na mão. Passamos por situações extremas e adversas, mas uma vez que tínhamos um libido compartilhado muito grande os desconfortos foram amenizados”, diz Botkay.
Brancos fazendo filmes juntos com indígenas têm sido geral nos últimos anos, principalmente no Brasil. O próprio Coletivo Lakapoy participou de “Ex-Pajé” (2018), de Luiz Bolognesi. Ano pretérito, no Festival de Cannes, Eryk Rocha lançou com Davi Kopenawa “A Queda do Firmamento”, co-dirigido com Gabriela Carneiro da Cunha. Mas uma vez que os indígenas percebem esse movimento?
“Falta no cinema um olhar de humanidade para nós indígenas. Ninguém fala da nossa saúde mental, por exemplo. A gente também é um povo amoroso, da coletividade. Não vivemos exclusivamente de luta o tempo todo, apesar de que não é verosímil tirar a luta de nós”, reflete Txai.
Essa sátira sobre narrativas indígenas enviesadas também está em um dos momentos mais tocantes do filme, quando João Moreira Salles, em incerteza quanto a legitimidade do próprio filme, questiona Txai sobre o veste de ser um varão branco filmando uma mulher indígena. Perguntei para João se “Minha Terreno Estrangeira” é um filme diferenciado na filmografia dele, composta em sua maioria por obras que retratam a intimidade de pessoas próximas a ele.
“Esse não é um filme sobre o outro. É sobre nós! A Amazônia faz segmento da vida de todos nós. Se a floresta finalizar, nós acabamos. É preciso escutar e respeitar. A nossa lógica branca é pobre”, respondeu.
A subversão dessa lógica empobrecida começou em 2019, quando João Moreira Salles decidiu morar por seis meses em Belém para se aproximar da Amazônia, segundo ele o patrimônio mais importante do Brasil. Dessa viagem, resultaram uma série de reportagens para a revista piauí e um livro, “Arrabalde”, publicado pela Companhia das Letras.
Outrossim, outra “teoria estranha” (nas palavras dele): fazer uma espécie de vlog, um quotidiano em vídeo. Filmar do próprio celular, todos os dias, cinco minutos de imagem em movimento. “Eu volto e tentamos fazer um filme”, disse em mensagem na era a Eduardo Escorel, que assina a montagem de “Minha Terreno Estrangeira” junto de João e Laís Lifschitz.
Existia a promessa de um filme a ser feito sobre a Amazônia e, ao mesmo tempo, a possibilidade dele não dar manifesto. Algumas dessas imagens foram exibidas em agosto de 2020, durante uma live no YouTube intitulada “Filmes Inesperados”, mas esse filme ainda não foi feito. O transe iminente das eleições de 2022 e a democracia na berlinda fizeram com que o diretor mudasse o foco da narrativa. “Quem são as pessoas que realmente decidem sobre as coisas no Brasil?”, provoca Txai.
A floresta sob ataque, em chamas, desmatada, com a boiada passando, coloca em risco não exclusivamente a vida dos indígenas mas a própria possibilidade de possuir um porvir no Brasil.
“João apresentou quatro versões do filme pra gente. Todas estavam erradas!”, pondera Ubiratan arrancando gargalhadas da equipe. “O filme estava ao contrário”, complementa Txai. João Moreira Salles aceitou as críticas e subverteu o próprio olhar sobre a obra: “A guião de Almir nas eleições é mais relevante politicamente do que a vitória do Lula”.
A estrutura do filme foi radicalmente alterada nessa construção coletiva de narrativa. O processo de montagem levou mais de um ano. O roteiro vai e volta no nosso tempo branco, linear, e abraça o tempo indígena, circunvalar. O que justifica o segundo vez chegar antes do primeiro e algumas sequências que se repetem, mas possuem pequenas diferenças entre si.
Dos 50 candidatos indígenas a deputado federalista nas últimas eleições, exclusivamente 5 venceram. “A experiência indígena é viver a guião”, finaliza João. Quanto mais vamos ter que perder? Quem serão os guardiões da floresta nos próximos anos? Porquê planejaremos melhor nossos territórios de modo que os indígenas não sejam estrangeiros no próprio país deles? Perguntas que o filme não responde, mas deixa no ar.