Filha de reis, profetisa a quem Apolo deu o dom da profecia em troca do paixão, Kassandra tentou avisar aos troianos o que iria sobrevir caso levassem o cavalo de madeira para dentro das muralhas.
Porém, uma vez que ela não entregou seu paixão uma vez que prometera, o deus fez com que ninguém acreditasse nas suas profecias. Tantos séculos depois, Kassandra é uma personagem que une os tempos, a estes transpassando e transgredindo.
“Não sou varão, não sou mulher, sou Kassandra”, ela canta. E a voz que escutamos é de uma artista migrante em terreno e no corpo: a cantora María Castillo de Lima.
Nascida em São Paulo, filha de um pedreiro prateado e uma cozinheira brasileira, cresceu em La Plata e ingressou em 2010 no coro do Teatro Colón, uma vez que tenor (voz mais aguda masculina). Um ano depois, depois sua transição, conseguiu a proeza de mudar para o naipe de soprano (mais aguda voz feminina).
Sua voz de cantora transgênero é resultado de uma transmigração, e o instrumento de Maria Castillo de Lima tem um tanto de único: dissemelhante de “sopranistas” (uma vez que o brasiliano Bruno de Sá, que faz importante curso na Europa) ou de contratenores (homens que desenvolvem a voz de falsete), ela consegue manter uma voz poderoso, com cores escuras de mezzo-soprano, enorme e de impacto dramático sem “quebras” entre o novo registro de soprano e a antiga voz de tenor.
No ir e vir temporal da história que interpreta, entre o mito e os acontecimentos atuais, usa com igual facilidade suas vozes feminina e masculina.
É mal, nessa novidade ópera do compositor prateado Pablo Ortiz e do dramaturgo uruguaio Sergio Blanco (no Brasil suas obras têm sido cada vez mais representadas: “Tráfico”, “A Ira de Narciso”, “Tebas Land” etc) acrescenta-se ao mito uma novidade página —contemporânea e importante— dando a voz de uma mulher-trans à profetisa grega.
Sozinha no cenário e luz sensível de Gonzalo Cordova que evocam um bar vazio entre luz e sombras, essa Kassandra caminha num soalho de mosaicos preto e branco —metáfora ao mundo binário que ela desafia?— uma vez que no tabuleiro de xadrez de sua vida.
Pesadas botas masculinas misturam-se com tecidos dourados e leves no figurino imaginado por Luciana Gutman. Tudo afirma que a tragédia dessa Kassandra não é a guerra, sempre um substantivo masculino, mas sim a luta contra a solidão e o desespero de quem precisa ser ouvida.
Ela precisa recontar uma verdade que outros parecem se recusar a admitir, numa inevitável semelhança ao que passam as pessoas trans na América Latina e pelo mundo afora ao requerer o simples recta de subsistir —direcção que compartilha com mulheres oprimidas por regimes teocratas ou comunidades perseguidas pela sua liberdade de amar.
Num inglês propositadamente torto, de refugiada, de sobrevivente, de trabalhadora do sexo, Maria Castillo de Lima canta durante uma hora a relação de sua própria história a de Kassandra.
A música de Pablo Ortiz coloca-se, assim, a serviço do texto de Blanco e da encenação de Diana Theocharidis e Alexandros Efklidis, num espetáculo eficiente e aventuroso que tem ao menos três notáveis momentos de estranha, inusitada delicadeza e originalidade. Primeiro, quando a profetisa divide conosco a dor de sua mãe quando pensou que seu fruto varão havia deixado de subsistir na transição para mulher; depois, o diálogo de Kassandra com o Pernalonga (sim, o dos desenhos animados); por sim, uma antológica cena em que Maria Castillo conversa com uma dezena de vibradores, dos mais diversos tamanhos e cada um representando um dos homens que passou pela sua vida.
Da música em si, essencialmente tonal e muito muito pensada do ponto de vista de escrita vocal, pode-se proferir que enfatiza o espaço de uma Kassandra que está à deriva, sem um porvir para prever e esperando a chamada de um cliente, Monsieur Flaubert, que lhe pagará US$ 40 por uma noite de sexo.
Assim, um quarteto instrumental (violino, violoncelo, clarinete, percussão) regido de longe pela maestra Eduviges Picone, alternam-se momentos líricos com sons de música eletrônica, passagens de rádio operados por um computador e, simples, a voz falada e cantada de Maria Castillo.
“Kassandra” prova que zero é preto ou branco e a valia de estimular-se o chegada de todos a todo tipo de cultura. A ópera, em peculiar, é uma catedral de sensações; temos somente de saber que a todos é permitido olhar para os céus e sentir o divino.