“Uma obra com novas formas não tem término”, diz a atriz Marcela Guerty, antes de soltar uma daquelas risadas que, de tão longas, passam a ser constrangedoras. A frase do personagem Boris Aleksievich, no início da peça “Gaivota”, indica que a releitura argentina do clássico de Anton Tchékhov, com dramaturgia de Juan Ignácio Fernandez e direção de Guillermo Cacace, será uma exegese do texto original. Por isso, as alterações da remontagem são tão precisas, porquê sugere o próprio título, que suprime, com discrição, o cláusula definido “a” de “A Gaivota”.
Em cena, cinco mulheres contam a história dos 13 personagens criados por Tchékhov. Elas vestem a roupa do corpo e se sentam ao volta de uma mesa, onde estão servidos pães, queijos e vinhos. Além de Guerty, as atrizes Romina Padoan, Raquel Ameri, Muriel Sago e Clarissa Korovsky falam em microfones, porquê se apresentassem um podcast. Não se trata, porém, de uma leitura dramática. Toda a ação se concentra na fala da fala e do texto.
Pensando novos formatos, a montagem argentina integra a programação deste ano da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, que há uma dezena procura tensionar os limites da linguagem teatral, abarcando produções radicais de diferentes partes do mundo. A décima edição será oportunidade, nesta quinta-feira, num evento para convidados, no Teatro do Sesi.
“A escolha por cinco mulheres não foi motivada por uma agenda progressista ou identitária”, diz Cacace, ressaltando que representa um coletivo. “O objetivo foi conferir às personagens uma sensibilidade maior, inclusive para simbolizar os defeitos masculinos sem caricatura.”
Publicada no término do século 19, a dramaturgia original é centrada na figura Trepliov, que é fruto de Arkádina, uma famosa atriz. Ao apresentar sua novidade peça para o círculo social da mãe, Trepliov tem sua arte rejeitada pela escol intelectual.
Em paralelo, Nina, sua namorada, se apaixona pelo jornalista Trigorin, o amante de Arkádina. A novidade releitura valoriza a personagem secundária Masha, porquê observadora da trama. Estreada há dois anos em Buenos Aires, a peça se tornou um sucesso do teatro prateado.
“Gaivota” acabou de ser apresentada no Festival Next Wave, em Novidade York, e obteve sucesso na Europa, em países porquê França e Espanha. Na visão de Cacace, o feito deve ser comemorado, considerando a subida ao poder do presidente Javier Milei, de ultradireita, na Argentina. “Qualquer gesto artístico que se posicione contra o governo é atacado”, diz ele. “Milei está ameaçando trinchar a verba do Instituto Vernáculo do Teatro, o que é um risco muito concreto.”
Nas próximas duas semanas, outros três espetáculos internacionais ocuparão os teatros da capital paulista —”Vagabundus”, do coreógrafo moçambicano Idio Chichava, “A Vida Secreta dos Velhos”, do diretor libanês Mohamed El Khatib e “Dambudzo”, de Nora Chipaumire. Nascida no Zimbábue, ela é a artista em foco desta edição e apresentará ainda o processo criativo de seu novo espetáculo.
De conformidade com Antonio Araujo, diretor artístico da MITsp, a presença de Chipaumire representa um dos eixos conceituais da mostra deste ano, que é mesclar cultura folclórica e arte contemporânea. “Há um preconceito com as manifestações artísticas tradicionais”, afirma Araujo. “Queremos mostrar que a arte ascendente não é alguma coisa do pretérito e pode se combinar a tendências que estão sendo debatidas agora.”
Não à toa, a MITsp homenageia o multiartista pernambucano Antonio Nóbrega, que apresentará o espetáculo “Mestiço Florilégio”. Araujo diz ainda que a maioria das obras selecionadas para a MITsp é encenada por elencos numerosos, num contraponto à onipresença de monólogos na cena paulistana e nos festivais, que preferem produções enxutas e mais econômicas. Desse modo, o diretor artístico pretende ressaltar a natureza coletiva da arte teatral.
Em paralelo às atrações estrangeiras, a plataforma MITbr, dedicada à produção brasileira, apresenta nove obras, sendo uma estreia vernáculo, caso de “Réquiem”, novidade coreografia de Alejandro Ahmed, apresentada pelo Balé da Cidade de São Paulo.
No recorte vernáculo, o carioca Wallace Ferreira é o artista em foco. Sabido pelo nome artístico Patyfudida, o bailarino vai apresentar a coreografia “Repertório nº 3”, em parceria com Davi Pontes.
Ao longo de dez anos, a MITsp apresentou encenações marcantes, que inflamaram debates na sociedade. Na primeira edição, militantes em resguardo dos animais pararam a peça “Eu Não Sou Formosa”, da espanhola Angélica Liddell, que contracenava com um cavalo. Sem saber que o bicho recebia cuidados especiais e estava acostumando com a função, o grupo leu um manifesto e deixou o teatro.
Em 2015, “Stifters Dinger”, do teutónico Heiner Goebbels, enfureceu a classe artística ao suprimir a presença do ator, deixando unicamente uma engrenagem no palco. Dois anos mais tarde, “Branco”, de Alexandre dal Farra, causou polêmica ao tratar a branquitude e a questão racial, sem a inclusão de atores negros.
Em 2018, primeiro ano da MITbr, a performance “A Gente se Vê Por Cá”, de Nuno Ramos reproduziu, com dois atores, a programação da TV Orbe, durante 24 horas.
Agora, a MITsp chega à décima edição partida por dificuldades orçamentárias. Metade das atrações previstas precisou ser cancelada por falta de patrocinadores. A mostra captou R$ 3,1 milhões e precisava de mais R$ 2,5 milhões para atender toda a programação planejada.
“Recuperamos a noção de teatro porquê ágora, espaço em que a população pode discutir temas importantes”, diz Araujo. “Para os próximos dez anos, gostaria de fazer a mostra com mais pundonor e menos precariedade, com apoios garantidos por um tempo maior. Todo ano começamos a captação do zero.”