Se na tragédia grega o rumo é imposto pelos deuses, desencadeando quedas coletivas que ecoam na polis, Nelson Rodrigues transplanta o trágico para o subsolo da psique humana em “Senhora dos Afogados”. Na montagem do Oficina, dirigida por Monique Gardenberg, não há divindades a governar os destinos, mas forças obscuras que emergem dos porões do libido e da culpa.
A areia que cobre o palco é o terreno instável do inconsciente, onde personagens cavam suas próprias armadilhas e o mar — projetado em uma cortinado de fitas —, oscilando entre serenidade e fúria, representa pulsões obscuras que se agitam sob a superfície da moralidade.
Leona Cavalli, porquê a protagonista Eduarda, personifica essa transição do trágico: seu conflito não nasce de uma maldição divina, mas de uma guerra interna entre libido e moral. A amargura e o desespero da matriarca Dona Marianinha (Regina Braga), revelam-se porquê fraturas de uma identidade construída sobre mentiras, enquanto Lara Tremouroux dança astutamente entre a inocência e a perversão.
O ritual teatral disseca os segredos que apodrecem sob tapetes sociais: as Vizinhas (Giulia Gam, Cristina Mutarelli, Michele e Muriel Matalon), com sua bisbilhotice cruel e humor cortante, funcionam porquê projeções do superego social que sussurram culpas e fomentam neuroses, trazendo à tona as mortes que tanto no pretérito quanto no presente arruínam a família Drummond.
Nesta releitura, a catarse vem do confronto brutal com o que Rodrigues chamava de “nossas verdades sujas”. Assim, a montagem atualiza o trágico porquê naufrágio voluntário nas águas turvas do que insistimos em não nomear.
As Prostitutas do Cais, coro que substitui as vozes divinas do teatro clássico, também desnudam pulsões reprimidas expondo as feridas narcísicas da família burguesa, cada vez mais acuada. Enquanto o mar segue seu fluxo turbulento de afetos recalcados, que arrastam as personagens para abismos íntimos.
Na fusão entre tradição grega e linguagem contemporânea, a montagem revela seu cerne: a areia move-se sob os pés das personagens porquê rumo inescapável. O Oficina não encena um texto, mas disseca pulsões – vaidade, culpa, luxúria – que cá Rodrigues elevou à categoria de mito.
A força da peça reside nessa alquimia: o expressionismo cênico contrasta com a densidade psicológica, e a legado do teatro experimental dialoga com a estrutura clássica. O resultado não é um confronto. Gardenberg e elenco desafiam o testemunha a reconhecer, nas sombras projetadas, os monstros que todos carregamos – prova de que a tragédia rodriguiana permanece tão atual quanto incômoda.
No desfecho, a imagem de Zé Celso irrompe nas projeções porquê um espectro do próprio teatro brasílico, provando que a maior homenagem à tradição é subvertê-la.
Três perguntas para…
… Monique Gardenberg
Você disse à Folha que Zé Celso foi seu “ponto de referência na vida”. Uma vez que essa montagem dialoga com o legado dele, principalmente sua forma de “lamber” textos clássicos?
Zé Celso, assim porquê a Tropicália, teve um impacto profundo em mim. Sempre foi uma inspiração e um porto seguro — um lugar ao qual eu retornava sempre que me sentia perdida, sem rumo. O Teatro Oficina e o próprio Zé cumpriam esse papel na minha vida: me reconectar com o caminho que eu deveria seguir.
E, mais uma vez, um libido do Zé me colocou diante de Nelson Rodrigues! Sempre evitei os clássicos — não me sentia preparada. Nelson, as tragédias gregas, Shakespeare… Minha primeira aproximação foi em “O Mercador de Veneza”, quando organizei uma leitura da peça enquanto escrevia o roteiro de “Ó Paí, Ó”. Adaptei o oração de Shylock para a voz de Roque (Lázaro Ramos), trazendo-o para o nosso universo.
No filme “Paraíso Perdido”, revisitei a Odisseia à minha maneira — ela está lá, travestida, misturada à minha própria história. E com “Senhora dos Afogados” aconteceu o mesmo: a peça é minha e do Zé, porque carrega muito dele dentro de mim. Nós dois a devoramos, cada um à sua maneira.
O elenco que Zé Celso começou a reunir (Regina Braga, Marcelo Drummond) foi mantido na montagem. Uma vez que foi trabalhar com atores tão ligados a ele? Houve um peso emocional nisso?
Ser convidada por Marcelo Drummond para guiar o Oficina numa peça — um projeto que o próprio Zé Celso desejava montar — foi uma experiência intensa para mim. Zé já havia escolhido Regina Braga e Marcelo Drummond para o elenco, e, para o papel de Dona Eduarda, pensei imediatamente em Leona Cavalli, a quem conheci em 1994, quando apresentei “Hamlet” no Parque Lage, no Rio de Janeiro. Naquela estação, Marcelo e Leona eram jovens — interpretando Hamlet e Ofélia — e já eram uma força cênica impressionante.
Para as Vizinhas, um coro que simboliza o julgamento moral da sociedade e a opinião pública, imaginei atrizes externas ao Oficina, mas que tivessem uma relação afetiva com Zé Celso. Queria produzir uma rede de afeto em torno dessa montagem, que também era uma homenagem a ele. Por isso, convidei nossas parceiras Cristina Mutarelli, Giulia Gam, Michele Matalon, Muriel Matalon e Ligia Cortez — outra grande amiga de Zé — para inventar esse coro.
E, evidente, o elenco inacreditável do Teatro Oficina. Foi uma alegria trabalhar com todos, numa troca generosa e criativa. Eu sugeria alguma coisa, e eles traziam ainda mais. Marcelo me ajudou a definir o coro das Mulheres da Vida, no qual o esquina tinha um papel mediano. Durante os dias de experimento em mesa, fui percebendo quem melhor se encaixaria em cada papel: o Nubente, Paulo, Sabiá, o Vendedor de Pentes, a Dona…
Sylvia Prado, um verdadeiro monumento do Oficina, sempre foi minha escolha originário para a Prostituta Morta — um papel que, na versão original, era unicamente narrado por Misael Drummond, mas que decidimos encenar. Por termo, Lara Tremouroux, filha de Lorena da Silva e Thierry Tremouroux (atores queridos de “Os Sete Afluentes do Rio Ota”), faz sua estreia no teatro porquê Moema, a protagonista de “Senhora dos Afogados”. Curiosamente, Lara já havia participado de algumas cenas do heróico de Robert Lepage aos cinco anos de idade. Tudo se conecta.
A trilha sonora mistura Amália Rodrigues, Sigur Rós e Erasmo Carlos. Uma vez que a música ajuda a erigir o clima de “delírio trágico” da peça?
A música é o firmamento de todo o meu processo criativo. Primórdio a vislumbrar as cenas, mas só quando encontro a trilha sonora certa é que elas ganham forma definida – seja na minha mente consciente ou no inconsciente.
O mesmo ocorre quando escrevo. Preciso da música porquê portal – ela me transporta para fora da verdade, me levando a um estado quase onírico de geração. Nesses momentos, não estou mais criando unicamente, estou sonhando acordada.
Para erigir a atmosfera operística e cinematográfica que sempre imaginei para oriente projeto, recorri a referências precisas: fragmentos de trilhas de “Barry Lyndon”, “Vertigo” e até do cinema mudo. Mas o elemento vital veio da margem ao vivo – formada por Felipe Botelho, Pedro Gongom Manesco e Carlos Eduardo Samuel – que não unicamente pontua, mas intensifica dramaticamente os climas de suspense e tensão na narrativa.
Teatro Oficina – rua Jaceguai, 520 – Bela Vista, região mediano. Sex., sáb. e seg., 20h. Dom., 18h. Estreia 30/5. Duração: 180 minutos. A partir de R$ 60 (meia-entrada) em sympla.com.br. Morador do Bixiga: R$ 50 (compra presencial na bilheteria, mediante a comprovante de endereço em próprio nome, um ingresso por comprovante). A bilheteria do teatro abre com 1h de antecedência ao espetáculo.