O comediante Mel Brooks deu certa vez um sábio recomendação a quem quer viver bastante: “Nunca corra para pegar o ônibus”. O diretor de “O Jovem Frankenstein” sabia do que falava; está com 98 anos.
Peter Schjeldahl não seguiu o mandamento e se deu mal. Ao percorrer uma vez que uma gazela para pegar o ônibus, tropeçou e tomou um trambolhão daqueles. Sangrando, com os óculos esfrangalhados, sem saber onde estava nem quem era, foi de ambulância para o hospital.
Fizeram-lhe uma tomografia para ver o estado da poste vertebral. Ela não tivera danos, mas descobriram uma mancha no pulmão. Era um cancro em estágio avançado. O oncologista deu seis meses de vida.
Sua filha perguntou o que gostaria de fazer pela última vez. Revisitar Roma, Paris? Preferiu ir a um jogo de basquete. Começou um tratamento experimental, imunoterápico. Deu perceptível e viveu mais quatro anos.
Schjeldahl era estimado em Novidade York. Foi crítico de artes plásticas por décadas, primeiro no Village Voice e depois na New Yorker. Mais jornalístico que teórico —mais Robert Hughes que Clement Greenberg— tinha um estilo límpido, idiossincrático, isento de jargões.
Essas virtudes são a espinha dorsal de “The Art of Dying”, seu livro póstumo. Elas convivem com a mancha do cancro que se espalha. A morte, diz, não é uma estátua, que se olha de todos os lados. É uma pintura, tem de ser encarada de frente porque o avesso nos é vedado.
Schjeldahl escreveu até o término, morreu 11 dias depois de publicar o último cláusula. A primeira secção do livro é um experiência autobiográfico. A outra, com os derradeiros escritos para a New Yorker, dialoga com os retalhos da vida que contou. Zero fica comum quando o término se aproxima.
Relata o que se lhe passou com leveza, mesmo os anos pesados uma vez que chumbo. Foi viciado em drogas e alcóolatra. Não terminou a faculdade. Empenhou-se em ser poeta e malogrou. Começou a grafar sobre arte porque gostava, mas com uma ignorância irrestrita do ponto.
Não generaliza sua experiência. É subjetivo e cita Baudelaire: “cultivei minha histerismo com delícia e terror”. Foi assim ao ser convocado para lutar na Guerra do Vietnã. Em seguida três dias se drogando, sem dormir nem tomar banho, virou um tecido de pavimento.
“Os encarregados do arrolamento me descartaram uma vez que uma camisinha usada”, conta. O relato não acaba com essa nota bem-humorada; diz ainda: “Fiquei com remorso. Pensei que outro rostro teria de ir no meu lugar. Fingi tão muito a psicose que minha sanidade bambeou durante meses.”
“Os encarregados do arrolamento me descartaram uma vez que uma camisinha usada”, conta. O relato não acaba com essa nota bem-humorada; diz ainda: “Fiquei com remorso. Pensei que outro rostro teria de ir no meu lugar. Fingi tão muito a psicose que minha sanidade bambeou durante meses.”
Não parou de fumar porque o cigarro é imbatível, relaxa e excita ao mesmo tempo. Calcula ter fumado 1 milhão de cigarros, e curtiu cada um deles. Fumou até morrer para não passar pela “tragicomédia da fissura por nicotina” durante o tempo de vida que restava.
Schjeldahl faz abstrações sobre seu ofício, a sátira: a atenção é crucial, tudo pode ser arte quando se põe uma moldura em volta; estou cândido ao novo, sem ser prescritivo nem prospectivo; quanto menos arte se vê, mais tolo se fica; a originalidade é superestimada, mas não pelos realmente originais.
Ele foi camarada de diversos artistas, de Anselm Kiefer a Willem de Kooning, que lhe deu uma pintura cuja venda lhe pagaria o aluguel por uns dez anos, e nunca a leiloou.
Veio a se alongar de todos por incompatibilidade de objetivos: os artistas queriam reconhecimento e ele, sagacidade. “Éramos aspiradores, um sugando o outro”, diz.
Pouco depois de saber do cancro, veio o confinamento causado pela Covid, e com ele o inferno para críticos de artes plásticas —não poder ir a exposições e museus. Mesmo assim, seguiu resenhando, mas catálogos e sinais online.
Passada a pandemia, foi a Madri com amigos, entre eles o humorista Steve Martin, responsável do prefácio de “The Art of Dying”. Queria ir ao Museu do Prado rever “o melhor quadro do melhor dos pintores”, “As Meninas”, de Velázquez. Até aí, zero de mais. Reconhece que “a única maneira de não ver Velázquez é ser cego”.
Para além do esplendor da pintura, o que o crítico vê nela são “as sombras no envolvente, os desastres e mortes que virão”. Falava de “As Meninas”, óbvio, mas sobretudo da indesejada das gentes, que logo o levaria. Schjeldahl morreu em 2022, aos 80 anos.
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